Título: Bloco de cara nova
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Fonte: Correio Braziliense, 30/06/2012, Mundo, p. 24

Em retaliação ao impeachment de Fernando Lugo, o Mercosul formaliza a suspensão do Paraguai. Governantes anunciam a integração da Venezuela como membro pleno, a partir de 31 de julho. Durante o encontro, Dilma Rousseff assumiu a presidência pro tempore do grupo

Cidadão Mercosul

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi homenageado, no fim da cúpula de Mendoza, com o título honorário de "cidadão ilustre do Mercosul", em agradecimento "pelo papel desempenhado na aprofundamento dos laços históricos, políticos e culturais entre os povos da região e de sua liderança em prol da integração da América Latina e do Caribe". Lula foi retratado, como os demais chefes de Estado do bloco, por um artista plástico argentino que, a pedido de Cristina Kirchner, produziu quadros presenteados a cada um deles, inclusive a presidente Dilma Rousseff. "Um presidente nunca deixa de ser presidente e, para mim, a figura de Lula está indissoluvelmente unida à de meu companheiro de toda a vida", comentou Cristina, em referência ao falecido marido, o ex-presidente Néstor Kirchner. » Silvio Queiroz Enviado especial

Mendoza (Argentina) — O Mercosul começa o segundo semestre do ano sob a presidência brasileira com caras novas, e não apenas na aparência. No mesmo dia em que formalizou a suspensão temporária do Paraguai, como represália pelo impeachment relâmpago do ex-presidente Fernando Lugo, o bloco decidiu concluir a incorporação da Venezuela como membro pleno. Depois de seis anos de tramitação, um "processo contínuo e sistemático", como definiu a presidente Dilma Rousseff, Hugo Chávez poderá celebrar a adesão em 31 de julho, em uma reunião extraordinária convocada para o Rio de Janeiro.

"Espero que em 31 de julho seja concluído esse processo contínuo e sistemático pelo qual passou a integração da Venezuela", disse Dilma no discurso em que inaugurou seu período à frente do Mercosul. "Convoco todos os países presentes a participarem também desse esforço de integração", prosseguiu, diante dos líderes dos demais membros associados do bloco — Bolívia, Peru, Chile, Colômbia e Equador — e, inclusive, de representantes do México e de outros vizinhos sul-americanos, como a Guiana e o Suriname.

A súbita conclusão do prolongado processo da adesão venezuelana foi festejada por Chávez como "um dia histórico", após seis meses de tramitação, com dificuldades no Senado brasileiro mas, sobretudo, no Congresso paraguaio — onde a maioria decidiu paralisar o exame da matéria, como parte de suas escaramuças com o então presidente Fernando Lugo. Desse ponto de vista, a decisão anunciada ontem em Mendoza representou uma punição simbólica acrescentada às represálias pelo impeachment de Lugo.

Tecnicamente, o que permitiu acelerar a incorporação plena da Venezuela, como havia sido sugerido na véspera pelo chanceler uruguaio, Luis Almagro, foi justamente a suspensão do Paraguai. A decisão aprovada por Cristina, Dilma e pelo colega José Mujica deixa o quarto sócio do Mercosul privado de participar "das deliberações e dos organismos" do bloco. Dessa maneira, na letra das normas que regem o mercado comum, os três países têm carta branca para efetivar a adesão venezuelana, ratificada pelos respectivos congressos.

Como vinha sendo antecipado desde o início da semana, o Paraguai está excluído do Mercosul "até o pleno restabelecimento da ordem democrática", com a eleição do novo presidente, marcada para abril de 2013, como define a resolução aprovada pelos chefes de Estado. "Temos um compromisso democrático fundamental, que é o de respeitar o direito de defesa, rechaçar ritos sumários e zelar para que seja assegurada a manifestação da vontade dos nossos povos", afirmou Dilma no discurso com o qual assumiu a presidência pro tempore do bloco. "Devemos fazer esforços para que as eleições de abril no Paraguai sejam democráticas e justas", emendou. "O Mercosul e a Unasul vão aceitar a vontade do povo paraguaio, qualquer que seja o resultado dessas eleições", dissera pouco antes a presidente argentina.

"Neogolpismo"

No discurso com o qual transmitiu o comando do bloco, Cristina Kirchner fez um alerta contra o que classificou como um "neogolpismo" que ameaça os "governos de origem popular" na região — uma referência aos políticos de esquerda eleitos nas últimas duas décadas na América do Sul. A suspensão do Paraguai, prosseguiu, "não é só uma reação pela legalidade", mas também "para que não se instale na região isso que se chamou de "golpes brandos": sob o manto de uma certa legalidade, eles não passam de uma quebra da ordem constitucional".

A presidente argentina ressaltou que a Unasul "mostrou-se capaz de reagir de maneira unânime e pronta a situações que comprometeram a democracia" nos países-membros. Citou como exemplos "as tentativas de golpe violento" contra o presidente boliviano, Evo Morales, em 2008, e contra o equatoriano, Rafael Correa, dois anos mais tarde. "O valioso é que na Unasul não exigimos que todos estejam sempre 100% de acordo", concluiu Cristina. "Não temos dois pesos e duas medidas na questão da democracia, não importam as posições políticas de cada governo."

Crescimento

As duas presidentes coincidiram também na constatação de que a crise econômica europeia representa "um desafio e uma oportunidade" para o Mercosul e para a região, como afirmou Dilma. "Vivemos um momento muito importante para a nossa região, que é uma das menos afetadas pela crise", afirmou a governante brasileira. "A América Latina não é e não será apenas fornecedora de alimentos, minérios e energia", prosseguiu Dilma, "pois nossos países querem ser capazes de agregar valor e gerar valor". Na sua interpretação, "a integração econômica deve ser um fator importante para aprimorar as condições de vida dos nossos povos".

Também a líder argentina ressaltou "o momento muito complexo na situação mundial" e lembrou a participação de três países presentes ao encontro — Argentina, Brasil e México — na recente cúpula do G-20, na cidade mexicana de Los Cabos. Cristina relacionou explicitamente a estabilidade política às oportunidades econômicas. "A legalidade e a legitimidade dos nossos governos estão intimamente ligadas à estabilidade necessária para crescermos."

Temos um compromisso democrático fundamental, que é o de respeitar o direito de defesa, rechaçar ritos sumários e zelar para que seja assegurada a manifestação da vontade dos nossos povos"

Dilma Rousseff, presidente do Brasil

O valioso é que na Unasul não exigimos que todos estejam sempre 100% de acordo. (...) Não temos dois pesos e duas medidas na questão da democracia, não importam as posições políticas de cada governo"

Cristina Kirchner, presidente da Argentina