Título: Novos pais em menos de 72h
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 03/07/2012, Brasil, p. 8
A prática de adoções falsas para legalizar brasileiros fora do país é tão ágil quanto rentável. Em menos de 72 horas, integrantes do grupo criminoso conseguem localizar europeus dispostos a serem pais de cidadãos do Brasil. Os valores são altos: tanto os repassados aos falsos pais, quanto os que ficam com os intermediadores. Para conseguir a cidadania estrangeira, o interessado tem que desembolsar até 7,9 mil libras (quase R$ 25 mil), e ainda fica à mercê de perder o dinheiro para golpistas, já que toda a transação é feita ilegalmente.
Um participante do esquema, que se identificou como Mateus, contou que os estrangeiros interessados em embolsar dinheiro com as adoções ilegais cobram 5 mil libras. "Você paga a metade na hora em que ele assina os papéis e metade quando sair a sentença", explica o agenciador, por e-mail. Empresas sediadas no Reino Unido e em Portugal lucram com esse tipo de negociação e fazem a intermediação entre os brasileiros interessados em regularizar sua situação no exterior e os falsos pais adotivos que querem ganhar em cima de imigrantes irregulares.
Além de pagar aos estrangeiros que assinarão os papéis da adoção, os cidadãos brasileiros ainda precisam pagar 2,9 mil libras para os intermediadores. "Esse valor, da mesma forma, você paga a metade na entrada e metade quando sair a sentença", justifica Mateus. Durante a negociação, ele se mostrou interessado em lucrar com as adoções ilegais. Respondeu aos pedidos em menos de 72 horas e prometeu agilidade no processo.
Negociações
Cientes de como o negócio pode render, os brasileiros que servem de intermediários nas adoções buscam contatos entre os estrangeiros que já participaram do esquema. Um advogado contatado pela reportagem, que já havia intermediado diversas negociações do tipo, contou que poderia procurar outros brasileiros adotados vivendo em Londres para tentar localizar mais ingleses dispostos a ganhar dinheiro.
O processo de burlar a Justiça para conseguir cidadania estrangeira começa com a assinatura de uma procuração. O estrangeiro cooptado pelas organizações criminosas assina o documento, declarando o desejo de adotar o brasileiro. Ele declara que tem vínculo afetivo com a pessoa que será adotada, como a lei exige. O número dos pedidos de adoções de adultos impressiona: foram 75 ações dessa natureza nos últimos 18 meses, somente em nove cidades goianas, incluindo a capital.
Com base na premissa de que o processo envolve apenas adultos, magistrados têm dispensado até mesmo a formalidade de ouvir pessoalmente os envolvidos na ação. Com a procuração assinada por um estrangeiro em mãos, é possível conseguir uma sentença favorável. Esse documento é suficiente para, na Europa, solicitar a cidadania estrangeira dos pais adotivos. Essa fraude judicial no Brasil não tem custos financeiros diretos para o país, mas sobrecarrega os serviços públicos em locais como o Reino Unido e Portugal. Isso porque o brasileiro que conquista a cidadania inglesa, por exemplo, terá acesso irrestrito a um dos melhores sistemas de saúde do mundo. Também usufruirá de outras benesses garantidas legalmente a cidadãos da Inglaterra, como as facilidades de moradias e programas sociais. O Correio contatou a Agência de Fronteiras do governo inglês, órgão responsável pela emissão de vistos e pela aprovação de processos de imigração. Mas, até o fechamento desta edição, não obteve resposta.
Colaborou Helena Mader
Processos Quase 80% dos processos estão concentrados em duas comarcas: Carmo do Rio Verde e Itapaci. Mas há também ações em Uruana, Nerópolis, Paraúna, Senador Canedo, Anápolis e Ceres. Uma minoria foi ajuizada em Goiânia. Na capital são poucos os processos dessa natureza identificados pelo Correio.
OAB investigará advogados responsáveis
O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante, pedirá abertura de investigação para a seccional da Ordem no Estado de Goiás. "Isso é crime. Esse tipo de fraude, se confirmada, não pode ficar impune. A advocacia deve coibir posturas dessa natureza", afirmou. Segundo Ophir, a ação de advogados na concessão de registros para adoções em série, conforme revelou ontem reportagem do Correio, denigre a imagem da classe. "O mínimo que se espera é a punição penal e administrativa dos envolvidos", reforçou o presidente. As 75 ações de adoções suspeitas, identificadas pela reportagem, estão sob responsabilidade de apenas dois advogados, que fariam parte do esquema criminoso. A atuação deles é fundamental para o sucesso da empreitada, já que, quando o brasileiro não tem um estrangeiro que o adote, os advogados auxiliam na intermediação. Além disso, há a suspeita de que eles fariam acordos com funcionários de determinadas comarcas para que os processos tenham êxito.
Um dos advogados citados na matéria, Paulo Alves Ferreira da Silva, responsável por pelo menos 58 ações no interior de Goiás, ofereceu auxílio para encontrar um estrangeiro em conversa gravada. E admitiu escolher determinadas comarcas do interior onde processos teriam mais chances de serem deferidos. Depois, para a reportagem do Correio, negou conhecer a prática de compra de adotantes. Ele afirmou que não trabalharia em casos de adoção forjada porque "a lei proíbe".
Para Ophir, se confirmadas as denúncias, os integrantes da advocacia feriram o código da classe e violaram as regras da categoria, maus exemplos que podem repercutir negativamente. "A missão do advogado é defender e proteger o cidadão, e não estar ligado a tais tipos de crimes", reforçou. Ainda segundo o presidente da OAB, o Judiciário e o CNJ devem fazer uma apuração exemplar.
Itamaraty
O Itamaraty afirmou à reportagem, por meio da assessoria de imprensa, que tomou conhecimento do esquema de "compra" de pais adotivos na Europa pela reportagem. No entanto, a pasta informou que não pode tomar providências inicialmente. No caso de desdobramentos, está disposta a integrar uma cooperação internacional em busca de informações. A Embaixada de Portugal no Brasil prometeu um posicionamento diante dos fatos denunciados, mas não retornou até o fechamento desta edição.