O globo, n. 31138, 07/11/2018. País, p. 4

 

O 'pacote Moro' para combater o crime organizado

Cleide Carvalho

Silvia Amorim

07/11/2018

 

 

 Recorte capturado

 

 

Futuro ministro anuncia série de medidas contra corrupção e violência

Em pouco mais de uma hora e 40 minutos de entrevista coletiva à imprensa, o juiz Sergio Moro reforçou ontem o que será a principal estratégia à frente do Ministério da Justiça e da Segurança a partir de janeiro de 2019. Para combater a corrupção e o crime organizado, o magistrado planeja replicar uma força-tarefa nos moldes ao que foi feito na Operação Lava-Jato nos últimos quatro anos. Para isso, citou como exemplo a atuação do FBI no combate às máfias em Nova York.

Com discurso de que é imprescindível diálogo aberto com o Congresso, o magistrado tratou de questões que podem ser polêmicas na sua relação com o presidente eleito, Jair Bolsonaro, como a redução da maioridade penal, tratamento dispensado às minorias e até a forma como tratar o período de ditadura militar. Sobre o PT, disse que não há perseguição.

Sergio Moro disse que pretende utilizar forças-tarefas nos moldes da Lava-Jato não só contra esquemas de corrupção, mas contra o crime organizado. Deu como exemplo o trabalho feito em Nova York nos anos 1980, quando o FBI combateu famílias de traficantes em conjunto com promotorias locais ou federais:

— Embora elas (organizações criminosas) não tenham deixado de existir, têm uma força muito menor que no passado.

Pacote de medidas para o Congresso e o Executivo

Moro elencou medidas executivas e legislativas que pretende apresentar ainda no primeiro ano de governo e aprovar, no Congresso, já no primeiro semestre (detalhes no quadro acima).

— Todas são medidas de curto prazo e que não demoram anos para serem aprovadas. O que tem de ser alterado é o sistema processual, que gera processos sem fim. Embora reconheça criticas à sua escolha, Moro reforçou que a participação no governo não significa o ingresso na política. Disse que sua decisão levou em conta a tentativa de consolidar avanços em relação à corrupção, “sem correr risco de retrocesso”.

— Não tenho nenhuma pretensão de concorrer em qualquer momento da minha vida a cargos eleitorais, a subir em palanque —disse Moro.

Subordinação, Onyx e divergências com o chefe

Moro lembrou que nunca teve relacionamento com Bolsonaro. Chegou a lembrar que não o conhecia muito bem quando o encontrou uma vez num aeroporto:

—Nesse primeiro contato me pareceu um homem bastante sensato e ponderado. Eu assumo a minha posição no governo ciente de que estou numa posição subordinada — disse Moro, que também falou sobre divergências: — Podemos conversar e cada um ceder nas suas posições ou ele dar a última palavra. A decisão final é dele. E aí eu vou tomar minha decisão, se continuo ou não continuo (no governo).

Questionado a respeito do convívio no governo com Onyx Lorenzoni, que admitiu ter recebido dinheiro de caixa 2, Moro afirmou que o futuro chefe da Casa Civil reconheceu seu erro.

— Tenho grande admiração pelo deputado federal Onyx Lorenzoni, foi um dos poucos defensores do projeto de 10 medidas contra a corrupção na Câmara.

Confrontos não desejados com criminosos

Sobre a proposta chamada de excludente de ilicitude, do presidente eleito, para garantir que policiais não respondam à Justiça por mortes em serviço, Moro disse que “é preciso discutir a normativa para essas situações”. Segundo ele, essa preocupação não é exclusiva do presidente eleito, mas também de membros das Forças Armadas.

—Esses casos precisam de um protocolo. Precisamos analisar se já não estão cobertos pela legislação. E o que fazer para se criar uma norma. Em nenhum momento foi defendido o confronto — disse, acrescentando que há possibilidade de repensar o “tratamento jurídico” desses casos.

Posse de armas e ‘flexibilização excessiva’

Uma das principais bandeiras do presidente eleito, a posse de armas pela população (autorização para manter armamento dentro de casa) não é uma causa defendida sem ressalvas pelo juiz. Bolsonaro, durante toda a campanha eleitoral, pregou o acesso a armamento pela população. O gesto feito com as mãos de uma arma chegou a ser símbolo da campanha. Sergio Moro foi mais cauteloso com esse assunto:

— A plataforma na qual o presidente se elegeu prega a flexibilização da posse e do porte de armas. Eu externei minha preocupação a ele, de que uma flexibilização excessiva pode ser utilizada para municiar organizações criminosas.

Estatuto do desarmamento

O magistrado lembrou que ele se elegeu com uma plataforma que prega a flexibilização da posse de armas. — Dentro disso, me parece inconsistente agir de maneira contrária. Quando falamos de posse, falamos da arma mantida em casa — disse ele, reforçando que é preciso discutir, por exemplo, quantas armas cada indivíduo poderá ter em casa. — Quanto ao porte, o próprio presidente tem posição de que isso tem que ser mais restrito.

A redução da maioridade penal

Outro tema controverso, a redução da maioridade penal também mereceu uma ponderação por parte do juiz. Em entrevista recente, Bolsonaro disse que a maioridade poderia cair para 17 anos. “A nossa proposta é passar para 17, o futuro governo passa para 16. Devagar você chega lá”, declarou o então candidato. Moro foi mais cauteloso: — Existe uma proposta em discussão que prevê a redução para 16 anos em casos de crimes graves. O adolescente precisa ser protegido, mas um jovem acima de 16 anos já tem condições de percepção que não pode matar. Um tratamento diferenciado para esses casos me parece razoável.

Minorias, ditadura e declarações de Bolsonaro

Moro disse que a ação do ministério não se resumirá à corrupção. Para essas outras áreas, como minorias, vai haver uma atenção. Disse que não irá negligenciar ataques contra negros, gays ou qualquer pessoa.

— Claro que o foco da agenda inicial é contra a corrupção e crime organizado, mas nenhuma das áreas que estão no âmbito das atribuições do ministério vai ser negligenciada —disse ele. Ao responder sobre se considerava moderado o discurso de Bolsonaro de que era a favor da tortura, o juiz mencionou que podem ter sido “declarações infelizes”, mas que, segundo ele, por vezes fora de contexto. Sobre ditadura, Moro reconheceu o período como um golpe. Semanas atrás, Dias Toffoli, presidente do Supremo, chamou o período como um “movimento”.

Elucidação do caso Marielle Franco

A morte da vereadora Marielle Franco foi citada espontaneamente por Moro.

O juiz disse que as investigações precisam continuar:

—É um crime que tem que ser solucionado. Todos têm direito à lei —sustentou. O juiz agradeceu o trabalho da imprensa numa entrevista coletiva de quase duas horas. Reconheceu a importância do jornalismo durante a operação Lava-Jato, embora tenha afirmado que, por vezes, recebeu “críticas injustas”.

— A coletiva foi a forma que reputei apropriada para prestar esclarecimentos necessários, mas também em homenagem ao trabalho que a imprensa realizou durante toda a Operação Lava-Jato. A liberdade de imprensa foi fundamental porque informou a população desses crimes, que foram descobertos, investigados e punidos.

___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Juiz demarca suas diferenças com Bolsonaro

Paulo Celso Pereira

07/11/2018

 

 

O presidente eleito, Jair Bolsonaro , passou boa parte da campanha eleitoral alternando-se entre um renitente silêncio e a apresentação de soluções simples para problemas complexos. Desde que foi eleito, a realidade se impôs, e o presidente se viu obrigado a começar a expor suas ideias, mas ainda repletas de ruído. Ontem, o juiz Sergio Moro optou pelo caminho oposto.

Cinco dias após ser escolhido, Moro sentou-se frente à imprensa e, por quase duas horas, apresentou propostas objetivas e opiniões claras sobre a melhor forma de se combater a corrupção e a criminalidade comum — fugindo de bravatas e reconhecendo, inclusive, que será necessário tempo para que elas surtam efeito.

Ora mostrou afinidade com propostas de endurecimento na legislação apresentadas por Bolsonaro, ora mostrou divergir de ideias do presidente eleito. Sergio Moro ainda deixou claro que usará a própria popularidade para impedir ataques aos pilares democráticos, afagando a imprensa, destacando que não haverá discriminação contra “minorias”, tampouco criminalização a “manifestações sociais”.

Diante do evidente declínio da Lava-Jato em Curitiba, Moro optou pelo salto para o núcleo do novo governo. Sabia que isso o obrigará a responder inúmeras vezes que não agiu com parcialidade em seus julgamentos, mas ainda assim optou por comprar a briga.

Será a primeira de muitas.