Título: O Congresso pós-Demóstenes
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Fonte: Correio Braziliense, 12/07/2012, Opinião, p. 16

Foram nove anos e meio de mandato como vestal do Congresso Nacional. Mas de nada valeram ontem ao senador Demóstenes Torres a pose de paladino da moral e dos bons costumes, e a língua ferina de experiente promotor público sempre a apontar desvios éticos dos colegas. O figurino nobre esgarçou-se até virar pó e ele entrar para a história como segundo senador da República a ser cassado em plenário por falta de decoro. Faz companhia agora a Luiz Estevão, integrante da bancada peemedebista do DF também posto para fora pela porta dos fundos, em 28 de junho de 2000.

Estevão não teve como se defender de denúncias de envolvimento num esquema de desvio de dinheiro público na construção da sede paulista do Tribunal Regional do Trabalho (TRT). Demóstenes sucumbiu ao ter as relações com o bicheiro Carlinhos Cachoeira flagradas em interceptações telefônicas feitas pela Polícia Federal. As gravações estarreceram o país ao trazerem à tona esquema de exploração ilegal de jogos de azar e de pagamento de propinas para obtenção de vantagens em licitações. Tamanha foi a pressão popular que o senador não conseguiu um voto favorável a ele no Conselho de Ética nem na Comissão de Constituição, Cidadania e Justiça. No plenário, onde o voto é secreto, 19 o apoiaram, mas 59 não titubearam em cassá-lo e cinco se abstiveram.

Antes a cassação de apenas dois senadores significasse um comportamento irrepreensível dos demais, cuja postura republicana fosse praticamente uma unanimidade. Obviamente, não é o caso. Ocorre que a absolvição é a regra no Congresso Nacional, por ali imperar corporativismo capaz de todo tipo de artifício para preservar mandatos. A proteção começa pela composição dos conselhos de ética das duas Casas. Segundo levantamento do site Congresso em Foco, um em cada três integrantes dos colegiados responsáveis pelo início do andamento do processo contra seus pares está, ele próprio, sob investigação do Supremo Tribunal Federal (STF). Quando o processo de perda do mandato supera essa barreira e chega ao plenário, o voto secreto é a oportunidade oferecida ao parlamentar flagrado em desvio ético.

Mais: caso não vislumbre saída possível, seja pela gravidade das provas, seja pelo pequeno poder de reação, deputado ou senador sob risco de cassação pode renunciar ao mandato e preservar a elegibilidade. Assim, já na legislatura seguinte estará apto a voltar ao Congresso. Demóstenes, que preferiu apostar na absolvição e perdeu, só terá outra chance em 2027. Nessa loteria, ganhou a democracia. Mas a República não é uma casa de jogos de azar. Por iniciativa popular, a Lei da Ficha Limpa está aí para começar a reescrever a história. Também o Senado deu contribuição importante ao aprovar proposta de emenda à Constituição que institui o voto aberto nas sessões de cassação em plenário. Falta à Câmara completar o dever de casa. Mas falta sobretudo uma reforma política séria, que devolva ao Congresso Nacional a respeitabilidade que lhe cabe como representação digna do poder soberano do povo.

-------------------------------------------------------------------------------- adicionada no sistema em: 12/07/2012 04:52