Título: A República das crianças no aniversário do Estatuto
Autor: Nicodemos, Carlos
Fonte: Correio Braziliense, 10/07/2012, Opinião, p. 15
Na evolução do Estado brasileiro, ao longo dos seus 512 anos e variados modelos e sistemas políticos e sociais, identificamos um processo de diferentes percepções e ações do poder público e da sociedade em relação aos direitos das crianças, outrora dos denominados menores.
A indiferença como modelo político e filosófico do poder público marcou os séculos 16 a 18, no qual a criança era tratada como adulto de forma inferiorizada e carregada pelo peso de ser um ator social oneroso, desde a ausência de sua autodeterminação na sociedade até pela condição biológica de transmissores de doenças.
No século 19 identificamos uma mudança de postura do poder público estatal, passando este a desenvolver ações de controle social a favor/contra as crianças e os adolescentes, historicamente denominados menores. Esse modelo consolidou-se como a doutrina da situação irregular.
Essa intervenção se dá com a criação do primeiro tribunal de menores no Brasil, em 1923, e com a consolidação do primeiro Código de Menores, em 1927. Nesse modelo, abandonados e infratores constituíam uma moeda de dois lados, cujo destino seriam os %u201Cdepósitos corretivos%u201D da Fundação Nacional do Bem-Estar dos Menores (Funabem) e das Febens Brasil afora. A história começa a mudar quando um novo modelo, em 1979, se anuncia com a Declaração do Ano Internacional dos Direitos das Crianças da ONU.
Nesse ano é instalado um grupo de trabalho liderado pelo Estado da Polônia, visando romper com as vertentes segregadoras contra as crianças e os adolescentes até aqui desenvolvidas internacionalmente, inclusive no Brasil.
Em 1989, a ONU proclama a Convenção dos Direitos das Crianças, uma carta de direitos humanos infantojuvenil assinada por mais de 190 países, tendo sido o Brasil o primeiro signatário.
A partir da Convenção dos Direitos das Crianças, em 1990 é sancionado o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/90. Na nossa Constituição Federal de 1988, a criança e o adolescente são expressamente reconhecidos no artigo 227 como sujeitos de direitos, estando salvos de todo o processo de vitimização e competindo à família, à sociedade e ao poder público promover ações de afirmação de sua cidadania. Assim, no século 20, inaugura-se uma nova era de direitos para as crianças e os adolescentes no Brasil, com forte sustentação jurídica de direitos humanos, tanto em âmbito nacional quanto no internacional.
É colocado então o desafio de traduzir todo esse arcabouço jurídico em ações concretas, denominadas políticas públicas. A passagem da doutrina da situação irregular para a doutrina da proteção integral no âmbito da política estatal no Brasil, no que tange a gestão administrativa, deixou um enorme hiato até hoje não corrigido.
Os recursos investidos pelo estado brasileiro, entre as décadas de 1960 e 1990, por intermédio de órgãos como a Funabem, depois substituída pelo Centro Brasileiro para a Infância e a Adolescência (CBIA), proporcionalmente são maiores do que aqueles hoje aplicados pela Secretaria de Promoção dos Direitos das Crianças, do Ministério dos Direitos Humanos, vinculados à Presidência da República.
Segundo, que os mecanismos idealizados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, como os conselhos de direitos, instâncias de controle e deliberação das políticas de proteção especial, por força da Lei federal nº 8.069/90, em nível municipal, estadual e nacional, estão, hoje, num quadro geral no Brasil, sem autonomia, com baixa institucionalidade deliberativa e sem orçamento para promoção de suas ações.
Por mais que a Constituição Federal tenha consagrado a descentralização política administrativa como uma vertente da ação estatal no campo das políticas públicas para crianças e adolescentes, o financiamento delas ainda se dá de forma centralizada e federalizada, e à revelia da integração dos conselhos de direitos nos municípios, nos estados e em nível nacional, assim com da lógica do repasse de fundo a fundo nas esferas municipais, estaduais e nacional.
Nesta semana em que o ECA completa 22 anos, cerca de 3 mil pessoas, agentes públicos e militantes, estarão reunidas na 9ª Conferência Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, de hoje a 14 de julho, em Brasília. O principal intuito é formular uma Política Nacional dos Direitos das Crianças, com um plano decenal que integre os direitos das crianças e dos adolescentes no tempo e no espaço, constituindo verdadeira revolução republicana da modernidade, instituindo no aniversário do ECA uma nova modalidade de iluminismo, os das crianças e adolescentes.