O globo, n. 31153, 22/11/2018. Artigos, p. 3

 

Intervenção estatal no relógio biológico

Luiz Roberto Nascimento Silva

22/11/2018

 

 

O horário de verão começou este mês. Passamos por uma eleição dura, plebiscitária. A internet mostrou sua porção remédio, como sua porção veneno. Escolho assim um tema ameno para retornar minha colaboração neste espaço.

O horário de verão foi adotado pela primeira vez durante a Primeira Guerra Mundial em vários países europeus, como a Inglaterra e a Alemanha, e pelos Estados Unidos. Esse países situados em altas latitudes têm os dias muito aumentados devido aos horários de nascer e pôr do sol com longos crepúsculos. Nesses países, no verão existem dias muito longos, e o período de luminosidade é assim aproveitado. Não é o nosso caso.

Ele foi implantado continuamente de 1985 até hoje. O Ministério de Minas e Energia reconhece que a adoção da hora adiantada não resulta mais na mesma economia de energia, nem econômica. Os padrões de consumo mudaram com os anos. O vilão da energia era o chuveiro elétrico, hoje é o ar-condicionado. Em termos de consumo integrado — diurno e noturno — não há redução. Então, por que intervir no relógio biológico das pessoas se a economia diminuiu?

Vemos nas matérias pela imprensa e televisão que algumas pessoas gostam, outras não. Algumas atividades se beneficiam; outras perdem. Mas o ponto não é só econômico. É outro: não é função do Estado intervir dessa forma na vida e nas escolhas das pessoas.

O tema nos remete a outro que é o que mais interessa debater e refletir. Qual a faixa legítima que um regime democrático deve ter em relação à esfera individual do cidadão? Quais são os limites de obediência ao Estado que temos que ter numa democracia?

Isaiah Berlin, num estudo clássico, criou uma classificação de liberdade “negativa” e liberdade positiva. Ser livre, num certo sentido, significa não sofrer interferência dos outros. Quanto maior a área de não interferência, mais ampla é a nossa liberdade. Entretanto, os homens poderiam ilimitadamente interferir na vida em sociedade criando o caos social. Todos somos interdependentes, e a atividade de nenhum homem é completamente privada. A liberdade de alguns precisa depender da limitação de outros. Assim, cabe ao Estado criar regras no interesse de todos. Isso preconizou Hobbes. Essa seria a liberdade “negativa”.

O sentido “positivo” da palavra “liberdade” deriva do desejo do indivíduo de ser seu próprio amo e senhor. Tem origem na possibilidade de não ser impedido por outros homens de escolher o que cada um individualmente deseja e quer. Sem liberdade, não há espaço para a criatividade, para a originalidade, para a coragem moral, e a sociedade fica esmagada pela mediocridade coletiva. Esse é o contraponto de Stuart Mill.

Temos vários exemplos quase kafkanianos que foram se acumulando sem que as pessoas reagissem. Uma prefeitura impediu que os estabelecimentos colocassem sal na mesa. Outra regulou o modelo dos facões que podiam ser usados pelos vendedores de coco. O eleitor é obrigado a votar sob pena de severas sanções, mesmo sendo outro pleito com mais de 30% de abstenções, votos brancos e nulos. Exige-se o reconhecimento de firma de papéis que ficam esquecidos nas repartições. Os exemplos são infinitos.

É preciso que a sociedade fique atenta em relação à natureza e aos limites que o poder tem condição de ser legitimamente exercido pela sociedade sobre o indivíduo. Num momento em que acabamos de sair de um processo eleitoral intenso e antagônico, a discussão desse aspecto da democracia, que é supra-partidário, parece-me oportuna. É uma outra forma de adiantar os ponteiros de uma agenda moderna para o país.