Título: Correspondentes criticam espionagem na ditadura
Autor:
Fonte: Correio Braziliense, 16/07/2012, Política, p. 4

A localização de documentos sigilosos que comprovam o monitoramento de correspondentes internacionais e mostram que eles eram vistos como inimigos do regime militar surpreendeu jornalistas estrangeiros que atuaram no Brasil à época. Segundo mostrou o Correio na edição de ontem, agentes da Divisão de Segurança e Informações (DSI) e funcionários do Ministério da Justiça elaboraram dezenas de dossiês que incluíam, além das traduções de reportagens, pedidos de expulsão dos jornalistas do território brasileiro. Os documentos fazem parte do Arquivo Nacional e foram divulgados graças à sanção da Lei de Acesso à Informação.

O jornalista francês Charles Vanhecke foi correspondente do Le Monde no Brasil entre 1973 e 1977. O escritório da empresa funcionava no Centro do Rio de Janeiro, mas ele também sentia a pressão do trabalho quando chegava em casa. "Eu sabia que meus telefones eram monitorados e minhas correspondências sempre chegavam abertas. O empregado que eu tinha em casa era manipulado pela polícia, que perguntava sobre a minha rotina", relembra Charles Vanhecke, hoje com 78 anos, durante uma conversa por telefone da Bretanha, na França, onde passa férias.

Até mesmo as lixeiras do prédio de Charles eram reviradas. "Papéis desapareciam, tanto da minha casa quanto do escritório do jornal. Mas quando eu ia a São Paulo, esse tipo de monitoramento era ainda pior. Já fui até mesmo detido lá, mas no Rio de Janeiro nada de grave aconteceu comigo", conta o jornalista francês. Charles Vanhecke ficou surpreso com a informação de que há dossiês secretos a seu respeito no Arquivo Nacional brasileiro. "Eu sabia que minhas reportagens irritavam os militares de alguma forma, porque eu falava sobre as prisões e as torturas. Mas não achei que eu incomodasse tanto o governo brasileiro", falou rindo o francês. "De qualquer forma, o Le Monde tinha uma influência muito grande, era um pouco intocável e, por causa disso, acho que não fizeram nada comigo".

Ciente de como o momento era delicado no Brasil, Charles Vanhecke agia com diplomacia, apesar do tom crítico das reportagens. "Eu tinha contato com alguns militares e, uma vez, cheguei até mesmo a fazer uma entrevista em off com o general Golbery (do Couto e Silva). Por isso, não imaginava que eu fosse visto de modo tão negativo. Escrevi até mesmo alguns artigos positivos para o governo militar, falando sobre a abertura política prometida por Geisel". Depois de deixar o país voluntariamente em 1977, Vanhecke voltou ao Brasil nos anos 1980, quando acompanhou a morte de Tancredo Neves. O Correio também localizou a ex-correspondente do New York Times Marvine Henrietta Howe, citada como "presença indesejável" nos dossiês da Divisão de Segurança e Informação do governo militar. Ela está aposentada e vive em Virgínia, nos Estados Unidos. A jornalista tem uma casa em Oeiras, Portugal, onde passa parte do ano, e já escreveu livros sobre o islamismo no Marrocos e na Turquia, países onde também atuou como correspondente.

De Portugal, ela falou à reportagem e comentou suas impressões acerca dos relatórios. "Estou atônita com isso. Não tinha ideia de que eu estava em uma espécie de lista negra em Brasília. Eu simplesmente tocava o meu trabalho, que obviamente incluía conversar com pessoas como Darcy Ribeiro, Dom Helder, além de oficiais e cidadãos comuns", comentou.

Censura A presidente da Associação de Correspondentes da Imprensa Estrangeira no Brasil, Mery Galanternick, trabalhou com Marvine Howe no escritório do New York Times, no Rio de Janeiro. Ela se surpreendeu com a informação de que a antiga colega aparece nos antigos arquivos secretos da ditadura como uma inimiga do estado. "A Marvine não fazia matérias tão negativas, havia outros jornalistas muito mais polêmicos, como o Joe Novitski, que atuou em 1968", conta. O repórter citado por Mery não aparece nos documentos disponíveis no Arquivo Nacional.

Mery Galanternick relembra os métodos usados pelos correspondentes estrangeiros para driblar a censura. "Quando a reportagem era mais forte, o repórter saía do país e ia à Colômbia ou à Venezuela. De lá, ele transmitia o texto e, depois de um tempo, voltava ao Brasil", conta a presidente da entidade que representa jornalistas estrangeiros. "Se mandássemos daqui pelo telex, a censura não autorizaria. Havia um censor plantado no nosso prédio, na Avenida Rio Branco. Lá, além do New York Times, também funcionavam as agências Associated Press e Reuters", conta Mery.

Cartas O jornalista Larry Rohter, ex-correspondente do New York Times no Brasil, chegou ao país pela primeira vez durante a ditadura militar. Ele desembarcou em 1977 e também enfrentou dificuldades para trabalhar. No Arquivo Nacional, não há dossiês contra o polêmico repórter norte-americano — que ficou conhecido depois de publicar, em 2004, um artigo em que relatava os hábitos alcoólicos do então presidente, Luiz Inácio Lula da Silva.

Mas nos acervos dos órgãos de informação do regime militar o nome de Larry Rohter aparece em um documento listando destinatários de correspondência enviada por "entidades ou países comunistas". Desde que entrou no Brasil, o americano sabia que era seguido e grampeado. "Cheguei em 1977, uma época complicada. Algumas vezes, eu ouvia uma espécie de "clic" enquanto falava ao telefone e sabia que era um indício de grampo. Uma vez, uma voz estranha apareceu no meio de uma ligação telefônica", relembra Rohter. Ele conheceu Marvine Howe e tem um palpite a respeito da implicância dos militares com a colega. "Antes de chegar ao Brasil, ela cobriu a Revolução dos Cravos, em Portugal. Por conta disso, Marvine tinha um entendimento bem peculiar sobre o assunto", conta o americano.

Nos dossiês contra Howe e Charles Vanhecke, também há citações sobre as correspondências que os jornalistas recebiam. "Marco Antônio Tavares Coelho, militante do CC do PCB, remetia exemplares da Voz Operária, segundo suas declarações, para Marvine Foker, que não é outra senão Marvine Henrietta Howe, e para Charles Vanhecke, do Le Monde", diz um documento da Divisão de Segurança e Informação.

Para o editor adjunto da editoria internacional do New York Times, Marc Lacey, os dossiês contra a correspondente de um dos jornais mais poderosos do mundo são uma comprovação de que ela tinha uma boa atuação. "Marvine Howe era uma experiente correspondente e a inclusão de seu nome nesses arquivos parecem mostrar que, acima de tudo, ela estava fazendo seu trabalho. E fazendo bem", afirma Marc Lacey.