Título: Além da vida seca
Autor: Filizola , Paula
Fonte: Correio Braziliense, 16/07/2012, Brasil, p. 6

Picos (PI) — Dois mil e doze. Para famílias do semiárido nordestino o ano ficará marcado por uma das piores secas da história. Entretanto, o drama de retirantes descrito no romance da literatura nacional Vidas Secas, publicado em 1938 pelo escritor alagoano Graciliano Ramos, não é mais tão presente. O abandono de residências é bem menos frequente e a população não precisa migrar para sobreviver à estiagem.

Apesar de melhorias e de estarem acostumados com o fenômeno, que é cíclico, 2012 será recordado com tristeza. Até o momento, 1.187 municípios tiveram a situação de emergência decretada pelo governo federal. Mesmo quem já viveu para contar períodos históricos da estiagem, caso da aposentada Maria Francisca de Carvalho Costa, 74 anos, não hesita em garantir que passa agora pelo momento mais severo. "Já vi duas grandes secas, mas não como essa. Não choveu de jeito nenhum." E ela sabe que 2013 será pior, pois sem chuva as famílias não conseguiram plantar nada para colher no ano que vem. Levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que as perdas das culturas de milho, feijão e arroz superam 80%.

Matriarca de uma família de 11 pessoas, Maria Francisca reclama da falta de água. Moradora da comunidade Deserto, no município rural de Massapê, a 388km de Teresina (PI), ela conta que a última chuva forte que "deu para encher as cisternas" foi em novembro do ano passado. O normal da região são oito meses sem precipitações. Porém, este ano, ainda não caiu uma gota.

Ainda assim, a aposentada garante que a sobrevivência no semiárido melhorou, principalmente, por causa da água trazida pelos carros-pipa e pelas cisternas, instaladas pelo programa Um Milhão de Cisternas (PIMC). A iniciativa é parceria do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e com a rede de mais de 750 grupos da sociedade civil, unidos por meio da organização Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA). "As cisternas melhoraram bastante e não falta comida. Os animais também sofrem menos", comenta.

Em uma comunidade próxima à de Maria Francisca vive a família de José Benedito dos Santos Neto. O pedreiro de 42 anos mora com a mulher, Antonieta, três filhos e uma idosa. Eles também são beneficiários do PIMC, que distribui cisternas de 16 mil litros. Antes da instalação, José lembra que a família chegava a andar mais de 3km para cavar buracos no chão e conseguir água. Com a mudança, até o desempenho dos filhos melhorou na escola — fenômeno revelado em pesquisa de 2007 da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), que aponta que crianças e adolescentes com cisternas em casa são mais presentes nas instituições de ensino.

Atualmente, a propriedade da família tem também a cisterna calçadão, que junta água da chuva para lavar roupa, tomar banho e outras funções. O sistema ainda não funciona, porque, desde a instalação, não chove. O programa de benefícios da ASA — para o qual todos os beneficiários são capacitados — garante que as famílias ganhem, além das cisternas, canteiros produtivos. Antonieta tem três e cuida deles com dedicação. No entanto, por causa da falta de água só um tem mudas crescendo.

As tecnologias de convivência com o semiárido são, na opinião de José, um dos motivos da melhora na qualidade de vida. O outro é o programa de transferência de renda do governo federal, Bolsa Família. "Com essas ajudas, melhorou bastante. Quem mora na zona rural passa necessidade ainda, mas fome não", garante o pedreiro, que recorda as piores estiagens que já enfrentou: 1983, 1993 e a de agora.

Deficit hídrico O quadro é alarmante. Dados meteorológicos já classificam a atual seca como a mais severa dos últimos 30 anos. O fenômeno climático, porém, obedece a padrões. Sua ocorrência está enraizada na história do Brasil com registros de secas no Nordeste desde o povoamento pelos portugueses há mais de 500 anos (veja arte). Estudos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) mostram que o mais comum na região é que a seca se manifeste de duas formas: de 10 a 13 anos ela obedece a um ciclo moderado, que, em alguns casos, pode chover e até causar inundações; a outra ocorre a cada 26 anos. Nesses casos, a seca pode se prolongar por até seis anos.

Desde 2005, o Nordeste brasileiro apresenta esse padrão. Isso não quer dizer, porém, que não chova. Chove, mas abaixo da média natural. A região apresenta o deficit hídrico — a quantidade de água que se evapora é três vezes maior do que a de precipitações que caem. E a situação tende a piorar. A meteorologia estima que chuvas vigorosas só molharão as terras do Nordeste daqui a quatro anos. Até lá, o nordestino terá de ser ainda mais guerreiro.