O Estado de São Paulo, n. 45755, 26/01/2019. Política, p. A4
Servidores poderão definir dados como ´ultrasecretos'
Matheus Lara
25/01/2019
Executivo. Decreto altera as regras da Lei de Acesso à Informação e permite que comissionados classifiquem documentos públicos; analistas veem riscos à transparência
O governo de Jair Bolsonaro deu a servidores comissionados permissão para classificar dados e documentos como “ultrassecretos”, selo que impede sua divulgação pública por pelo menos 25 anos. Desde 2012, essa responsabilidade só podia ser exercida por integrantes da chamada alta administração: presidente, vice-presidente, ministros e comandantes das Forças Armadas. A mudança preocupa analistas e entidades que promovem a transparência do setor público.
Assinado pelo presidente em exercício, Hamilton Mourão, o Decreto 9.690/19 foi publicado ontem no Diário Oficial da União, e altera regras de aplicação da Lei de Acesso à Informação. O texto afirma que os integrantes do primeiro escalão do governo poderão delegar a ocupantes de cargos de confiança do grupo Direção e Assessoramento Superiores (DAS) 6 e 5 a atribuição de colocar informações do governo sob os mais altos graus de sigilo. O mesmo poderá ser feito por chefes de autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista.
O objetivo do governo, segundo Mourão, é reduzir a burocracia para análises de pedidos de acesso a dados públicos. Ele disse que o decreto veio da gestão do ex-presidente Michel Temer, e Bolsonaro deu “luz verde” para a assinatura.
Entidades e especialistas divulgaram uma carta aberta em protesto contra as alterações e pediram a revogação do decreto. “As mudanças colocam em grave risco o espírito da Lei de Acesso à Informação de atribuir ao sigilo um caráter excepcional e de aumentar o controle e o custo político da classificação sigilosa”, diz o texto.
O documento é subscrito por organizações como Artigo 19, Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Transparência Brasil e Instituto Não Aceito Corrupção, além de pesquisadores e ativistas ligados ao tema da transparência pública. “Ampliar o grupo de autoridades competentes para aplicar sigilo abre espaço para que o volume de informações classificadas como secretas e ultrassecretas aumente. O monitoramento da classificação dessas informações, consequentemente, é dificultado.” Os especialistas questionaram ainda o fato de a medida não ter sido debatida com a sociedade civil.
Burocracia. O ministro da Transparência e Controladoria-Geral da União (CGU), Wagner Rosário, defendeu o decreto. Ele disse que a Lei de Acesso à Informação já permitia a descentralização de análise de pedidos e afirmou que a nova regra ajudará na desburocratização.
“Isso não corta a transparência em nada, só descentraliza as decisões”, afirmou o ministro. “Qualquer problema, isso pode ser revisado, por meio de recursos, que vão continuar iguais.”
Mourão também falou em reduzir a burocracia. “O decreto, única e exclusivamente, diminui a burocracia”, disse o presidente em exercício, que assinou o decreto na ausência de Bolsonaro, que estava em Davos, na Suíça, no Fórum Econômico Mundial. “A transparência está mantida. Documentos ultrassecretos são raríssimos.”
A Casa Civil informou ontem que o decreto anterior “fazia restrição indevida”. “Este decreto (assinado ontem) está regulamentando melhor, mas limitando a servidores da alta administração em obediência ao Código de Conduta da Presidência da República”, disse a Subchefia para Assuntos Jurídicos da pasta. Segundo a Casa Civil, cada ministério terá de editar portaria para regulamentar quais servidores serão autorizados a fazer a classificação.
Integrantes do governo destacaram que, apesar da ampliação do rol de cargos com poder para determinar sigilo, será necessário delegar para servidores a função de classificar os documentos. O argumento é de que um ministro, por exemplo, não deixará de ter controle e poderá escolher não delegar a função.
‘Exceção’. O diretor executivo da Transparência Brasil, Bruno Brandão, disse ao Estado que o decreto contraria o princípio da publicidade. “A Lei de Acesso à Informação vem para criar uma cultura nova no Brasil. Uma cultura de que a informação pública, a publicidade, a transparência, isso é a regra, e o sigilo é exceção. E de que a informação pública é um direito. As exceções a esse direito têm de ser muito criteriosas e bem fundamentadas. A classificação como sigiloso é algo que restringe o direito à informação.”
Brandão afirmou que faltou diálogo com a sociedade. “Tem um erro de procedimento de origem, porque o diálogo é sempre saudável para a sociedade. (O decreto) Foi feito de maneira unilateral, sem debate, e, no mínimo, gera problema de mensagem e de compreensão.”
Para Manoel Galdino, diretor executivo da Transparência, o decreto traz riscos. “A mudança foi feita de forma pouco transparente. A sociedade não foi informada, o Conselho de Transparência Pública e Combate à Corrupção, que atua com a Controladoria-Geral da União, não foi informado e isso nos preocupa.”
LEI EM VIGOR DESDE 2012
Decreto
• Em maio de 2012, a então presidente Dilma Rousseff assinou decreto que regulamentou a Lei de Acesso à Informação. A lei possibilita que qualquer pessoa, física ou jurídica, sem necessidade de apresentar motivo, receba informações públicas.
Alcance
• A lei vale para os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e alcança União, Estados, Distrito Federal e municípios, inclusive Tribunais de Contas e Ministério Público. Entidades privadas sem fins lucrativos também são obrigadas a dar publicidade a informações referentes ao recebimento e à destinação dos recursos públicos por elas recebidos.
Classificação
• Conforme o risco que a divulgação de um dado pode trazer à sociedade ou ao Estado, a informação pública pode ser classificada como “ultrassecreta”, com prazo de sigilo de 25 anos (renovável uma única vez); “secreta”, cujo prazo de segredo é de 15 anos; e “reservada”, com prazo de segredo de 5 anos. É possível pedir a desclassificação ou a reavaliação da classificação.