O globo, n. 31181, 20/12/2018. Sociedade, p. 29

 

Dinheiro e armas apreendidos

Helena Borges

Daniel Gullino

Aguirre Talento

20/12/2018

 

 

Polícia faz buscas em endereços de João de Deus, que perde recurso ao STJ

A Polícia Civil de Goiás divulgou ontem o resultado da operação de busca e apreensão realizada na terça em endereços ligados ao médium João Teixeira de Faria, acusado de abusar sexualmente de suas fiéis — mais de 500 denúncias já foram feitas ao Ministério Público do estado. Foram apreendidos cerca de R$ 405 mil, em sete moedas diferentes, e quatro armas.

O dinheiro estava dividido em reais, euros, francos suíços, pesos argentinos e dólares americanos, australianos e canadenses. Foram encontrados três revólveres, um deles com numeração raspada, e uma pistola.

A apreensão ocorreu na residência de João de Deus, que está preso preventivamente e nega as acusações. Policiais também foram à Casa de Dom Inácio de Loyola, centro espiritual do médium, e à Casa da Sopa, instituição filantrópica mantida por ele em Abadiânia, interior de Goiás.

Ontem, uma equipe da Delegacia Estadual de Investigações Criminais (Deic) voltou à cidade para depositar em juízo o dinheiro apreendido.

João de Deus está preso desde domingo em Aparecida de Goiânia. As acusações de abuso contra ele vieram à tona por meio de depoimentos dados ao GLOBO e ao programa “Conversa com Bial”, há menos de duas semanas.

A defesa do médium recorreu ontem ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) para pedir sua liberdade por meio de habeas corpus, mas o apelo foi negado. O primeiro pedido de liberdade, que os advogados do líder espiritual fizeram ao Tribunal de Justiça de Goiás, havia sido rejeitado na terça-feira. A intenção da defesa era suspender a prisão preventiva ou conseguir a prisão domiciliar, com uso de tornozeleira eletrônica e proibição de exercer o ofício.

O pedido de habeas corpus entregue pela defesa ao STJ trata João como “paciente” durante todo o texto, alegando que ele é um senhor de 77 anos e que possui doenças cardíacas e está “recém-operado de um câncer”. O líder espiritual passou por uma cirurgia para retirar um câncer em 2015.

‘Deus que faz’

O GLOBO teve acesso ontem à íntegra do depoimento de três horas que João de Deus prestou à polícia no último domingo. O médium nega todas as acusações de abuso sexual e também a responsabilidade pelo que faz nos atendimentos espirituais. Ele diz que “as orientações são repassadas pelo espírito”. Questionado se faz tratamento com cirurgias incisivas, ele nega e responde que “Deus que faz”.

João Teixeira de Faria afirma ainda não entregar receitas de medicamentos ao fiéis que vão à Casa Dom Inácio de Loyola. Ao passarem pela fila de atendimento, os fiéis recebem das mãos do próprio João papéis com rubricas feitas pelo médium, que devem ser entregues na farmácia da casa na hora de comprar os remédios, funcionando seguindo a mesma dinâmica de uma receita médica.

Em julho, a reportagem esteve no “hospital espiritual” de João de Deus. O médium entregou um papel com sua rubrica. Voluntários explicaram que o papel deveria ser entregue na farmácia para comprar remédios. Foram cobrados R$ 100 por duas caixas de passiflora com 80 cápsulas, cada. Segundo a orientação impressa na embalagem, o paciente deveria tomar o remédio duas vezes ao dia. No depoimento, João afirmou que não havia entrega de receitas escritas e que o preço seria de R$ 50 por uma embalagem com 10 comprimidos.

Espírito dá a receita

As notas taquigráficas do depoimento relatam a explicação dada pelo médium:

“No atendimento não é repassada receita, as orientações são repassadas pelo espírito, ou seja, não é de maneira escrita, esclarece que apenas atende e orienta. Informa ainda que alguns frequentadores já adquirem os produtos, mesmo sem o encaminhamento do espírito, pois são frequentadores do local há muitos anos e acreditam na eficiência do produto”.

João negou, também, ter chamado “qualquer pessoa para se submeter a um atendimento individualizado”. Segundo seu depoimento, “são as pessoas que o procuram em busca de um atendimento individualizado, vez que são os frequentadores quem solicitam tal atendimento e não o interrogado”. As vítimas, por sua vez, contam terem sido orientadas pelo próprio médium, durante a sessão coletiva, a se encontrarem com ele após o atendimento geral para uma reunião.

O líder espiritual afirmou ainda ter sido ameaçado por um homem pelo telefone. Ele conseguiu se recordar detalhadamente da fala proferida pelo interlocutor, mas diz não se lembrar nem do dia em que recebeu a ligação, nem do aparelho telefônico que estava usando quando atendeu a chamada, muito menos da pessoa a quem o aparelho pertencia e que, segundo seu relato, teria entregue a ele o celular na Casa de Dom Inácio.

Segundo ele, no telefonema ele ouviu de um homem: “Eu tenho 50 pessoas para acabar com você. Se você colocar 100, eu coloco 200 e, se você aumentar isso, eu coloco mil. Eu vou acabar com você”, relatou.

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Do sagrado ao profano

Joel Birman

20/12/2018

 

 

Por que parcela da população precisa acreditar tanto na salvação para resolver as incertezas de sua existência social?

João de Deus está rapidamente perdendo a aura que o inseria no território do sagrado, lançado inexoravelmente no território dos mortais. A figura civil de João Teixeira de Faria passa a ocupar a cena de sua existência profana, perseguido pela Justiça. Os territórios de Abadiânia e da Casa Inácio de Loyola perderam o colorido de salvação, se esvaneceram na tonalidade cinzenta da existência mundana. Nada mais será como antes, João de Deus perdeu, em poucos dias, pelas múltiplas denúncias de abuso sexual de seus fiéis seguidores, sua legitimidade como curador, construída num longo processo teológico-espiritual, a matéria-prima para forjar seu carisma. Processo similar ocorreu com o guru Prem Baba, também denunciado por abusos sexuais.

Não interessa destacar as dimensões jurídicas desse acontecimento, mas sublinhar como a produção na crença da salvação se institui facilmente na sociedade brasileira. Por que parcela significativa da população brasileira precisa acreditar tanto na salvação, pela mediação do sagrado, para resolver as incertezas de sua existência social, movida pela precariedade? Esta indagação se impõe com urgência, toca nas vísceras da brasilidade, sempre acossada pela insegurança, nervos à flor da pele.

Não coloco em questão que João de Deus tenha o poder de curar. Estou longe de duvidar dessa possibilidade, constatada inúmeras vezes por diferentes beneficiários de suas práticas espirituais. Há dias alguém dizia que devia a João de Deus acura de um câncer, considerado incurável pela medicina científica, mas que ele merecia ser punido pelos abusos dos que a ele confiaram seus corpos frágeis. Enfim, como dizia Shakespeare, em “Hamlet,” existem mais coisas entre o céu e a Terra do que imagina a nossa pobre filosofia.

Ocorreu com João de Deus o que já aconteceu com inúmeros personagens que acreditaram no poder que lhes foi outorgado pelo Outro, e passaram ase acha racimado Bem e do Mal, podendo fazer o que quisessem e bem entendessem. Se esqueceram do óbvio, que qualquer poder é sempre provisório e circunstancial, de forma que o desinvestimento do poder ocorre num estalar dos dedos, como a saga de João de Deus nos demonstra.

Desde meados do século XIX a cura pela hipnose e pela sugestão fez a sua emergência triunfal no Ocidente, tendo nas práticas terapêuticas de Mesmer, no final do século XVIII na França, sua matriz. O que estava em pauta era o poder da influência de um líder carismático associado à crença presente numa massa de seguidores no seu poder curativo.

Com Freud, a psicanálise se inscreveu criticamente nessa tradição, ao enunciar que a transferência da figura do analisante para o analista conferia a esse tal poder, sustentado numa relação de amor, a saber, o a morde transferência. Porém, é necessário que os seguidores sustentem essa crença com vigor, sem o que afigura de líder não se mantém de pé. Com essa leitura Freud enunciou uma teoria do poder, em “Psicologia das massas e análise do eu”, para interpretara manutenção da hierarquia, nas instituições militar e religiosa, assim como do poder político. Por isso mesmo, pode ser inscrita na leitura das disciplinas constitutivas da modernidade, tal como Foucault empreendeu em “Vigiar e punir”.

Se o processo de servidão voluntária foi delineado no século XVI com La Boétie, o que passou a imperar desde o século XIX foi a servidão involuntária, baseada no poder disciplinar e no inconsciente, o que implica dizer que a crença na salvação se deslocou decididamente do campo da religião para o da ideologia, que, como religião secular da modernidade (Gauchet), passou a realizar decisivamente a gestão das relações de (...)

Essa crença na salvação ocorre quando os cidadãos perdem a confiança na sua potência e nas instituições democráticas, se deslocando de forma decisiva da confiança no múltiplo e na horizontalidade para a crença verti calem Um salvador, representado pelo líder carismático. Enfim, é o autoritarismo que se delineia no horizonte, com sua aura negativa de terror (Lefort).

Quando os cidadãos perdem a confiança nas instituições da democracia, o culto da salvação se delineia de forma funesta no espaço social, prometendo a redenção das dores e dos sofrimentos, que materializam a precariedade de milhares de pessoas que não mais acreditam nas transformações por vias terrenas, e investem decisivamente num líder carismático. Enfim, como dizia Brecht, em“Av idade Galileu ”, “infelizes são os povos que precisam de heróis ”.