O globo, n. 31180, 19/12/2018. País, p. 6

 

Bolsonaro admite dificuldade para rever reserva

Marco Grillo

Igor Mello

19/12/2018

 

 

Presidente eleito reconhece que decisão do Supremo Tribunal Federal impede revisão da demarcação da Raposa Serra do Sol; Agência Nacional de Mineração registra 97 pedidos para viabilizar exploração na área

O presidente eleito, Jair Bolsonaro, mudou o tom e reconheceu, ontem, que a intenção de rever a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, esbarra na decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema. O processo em que a Corte decidiu pela legalidade da criação da área transitou em julgado em setembro.

Anteontem, Bolsonaro havia manifestado a intenção de baixar um decreto para rever a demarcação e permitir uma autorização geral para a mineração em terras indígenas.

— Quem sabe um dia o Supremo acorde para isso e nos ajude a fazer com que essas reservas venham a ser exploradas, com racionalidade, obviamente, em benefício do próprio povo indígena —disse o presidente eleito, em transmissão ao vivo no Facebook.

Existem hoje na Agência Nacional de Mineração (antigo Departamento Nacional de Produção Mineral) 97 pedidos de pesquisa com o objetivo de viabilizar a mineração na Raposa Serra do Sol. Os requerimentos tratam de uma área de 651 mil hectares — a reserva ocupa 1,7 milhão de hectares.

A Constituição não veda a exploração nesses territórios, mas determina que o Congresso Nacional autorize cada caso — os requerimentos também são protocolados na agência, responsável por aprovar a atividade mineradora nas outras áreas do país. Um despacho publicado pelo órgão em outubro reforça o entendimento, com base em uma recomendação do Ministério Público Federal que explicita que a permissão é tarefa do Congresso.

Quando decidiu pela legalidade da demarcação da reserva, o STF listou 19 pontos a serem seguidos, na tentativa de atender aos interesses dos índios sem deixar de lado a soberania nacional. Alguns itens replicam o texto constitucional, como o trecho registrando que “o usufruto dos índios não abrange a pesquisa e lavra das riquezas minerais, que dependerá sempre da autorização do Congresso Nacional, assegurando-se-lhes a participação nos resultados da lavra, na forma da lei”.

Bolsonaro defende a exploração e o repasse de royalties para as populações indígenas. O assunto, no entanto, nunca avançou no Congresso. Um projeto de lei do senador Romero Jucá (MDB-RR), aprovado no Senado e parado na Câmara, sugere que o valor destinado às comunidades indígenas não seja inferiora 2% do faturamento bruto da mineradora naquela área. Outros textos que tramitam no Legislativo propõem índices semelhantes, mas o tema não foi regulamentado.

Para o advogado, ambientalista e ex-deputado Fábio Feldmann, o presidente eleito faz um discurso de “campanha” quando trata dos temas relativos às comunidades indígenas.

—As declarações são muito frágeis do ponto de vista jurídico, até mesmo quando ele (Bolsonaro) diz que não vai fazer novas demarcações. Se você encontra um povo indígena habitando determinada área, e as condições necessárias são preenchidas, é necessário reconhecer o direito, e a área tem que ser demarcada —afirma Feldmann.

“Direito adquirido”

O artigo 231 da Constituição estabelece que “são reconhecidos aos índios (...) os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. O quarto parágrafo do mesmo trecho determina ainda que “as terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”.

Anteontem, o ex-ministro do Supremo Carlos Ayres Britto disse ao colunista Bernardo Mello Franco, do GLOBO, que o usufruto das terras da Raposa Serrado Solé um “direito adquirido” dos índios e não pode ser modificado.

Um dos argumentos usados pelos defensores da mineração em áreas protegida sé a criação de regras para uma atividade que já acontece de maneira ilegal em determinados territórios. Um estudo do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) identificou, em 2017, 949 áreas de mineração em unidades de conservação na Amazônia, totalizando 45,8 quilômetros quadrados —um ano antes, a área de garimpo ilegal somava 29,3 quilômetros quadrados.

Um modelo citado como exemplo de sucessoéo da Austrália, que criou regras e tornou comum a mineração em terras indígenas. Procurado, o Instituto Brasileiro de Mineração(Ibram ), que reúne empresas do setor, preferiu não se manifestar sobre o assunto.

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Novo governo recua e demarcação ficará com conselho

Vinicius Sassine

19/12/2018

 

 

Futura ministra da Agricultura havia anunciado que definição de novas terras indígenas ficaria a cargo do presidente da UDR

O governo Jair Bolsonaro fez mais um recuo, desta vez num intervalo de menos de três horas. Depois de divulgar que a identificação e demarcação de terras indígenas, a titulação de áreas quilombolas e as políticas de reforma agrária ficariam sob a responsabilidade da liderança ruralista mais próxima do presidente eleito, o novo Ministério da Agricultura voltou atrás e divulgou um segundo comunicado, afirmando que questões relacionadas a demarcações e conflitos de terra serão submetidas a um conselho interministerial.

Às 12h48 de ontem, a futura ministra da Agricultura, Tereza Cristina, divulgou que o futuro secretário especial de Assuntos Fundiários e atual presidente da União Democrática Ruralista (UDR), Luiz Nabhan Garcia, ficaria responsável por “regularização fundiária, incluindo as atividades de identificação e demarcação de terras indígenas e quilombolas, o licenciamento ambiental e reforma agrária”.

Às 15h37, ela recuou. O novo comunicado diz que a secretaria de Nabhan ficará responsável pela definição da política fundiária do país, mas não por demarcações.

“A execução dessas políticas caberá ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), inclusive relativas a questões indígenas e quilombolas, por exemplo. A Funai (Fundação Nacional do Índio), que integrará o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, continuará a atuar nos assuntos ligados aos índios”, diz a nova nota.

Licenciamento ambiental

Ainda de acordo com o segundo comunicado, questões que envolvam demarcações ou conflitos de terras serão submetidas a um conselho interministerial. Ele reunirá os Ministérios da Agricultura, Defesa, Meio Ambiente, Direitos Humanos e Gabinete de Segurança Institucional (GSI), segundo a assessoria de Tereza.

O novo comunicado não fez reparos sobre o destino das licenças ambientais. Pela primeira nota, será uma atribuição da Secretaria Especial de Assuntos Fundiários. Os licenciamentos ambientais são, atualmente, uma atribuição do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

O futuro ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, disse ao GLOBO que os licenciamentos ambientais continuam sob a responsabilidade do Ibama. Ele confirmou que haverá mudanças nas licenças, mas restritas à emissão de pareceres opinativos sobre impactos em áreas indígenas. Hoje, esses pareceres são atribuição da Funai. No governo Bolsonaro, ficarão sob a guarda da secretaria de Nabhan no Ministério da Agricultura.

No atual governo, cabe à Funai os estudos para a demarcação de terra indígena. O Incra é responsável pela titulação de territórios quilombolas, com a participação da Fundação Palmares, e ações relacionadas a políticas de reforma agrária.

Os comunicados da futura ministra da Agricultura não dizem o que ocorrerá com Funai, Incra, Fundação Palmares e Ibama em relação às atribuições em questão. O GLOBO apurou com fontes do grupo de transição que a Funai será esvaziada, coma transferência de atribuições para a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários.

Em entrevista na tarde de anteontem, Nabhan havia negado que a demarcação de terras indígenas deixaria a Funai para ser abrigada na sua secretaria:

—A Funai continua com as mesmas atribuições. E ela não ficou com agente, masco mo Ministério dos Direitos Humanos, da ministra Damares Alves. Na secretaria vamos discutir qualquer questão fundiária. São inúmeras as situações: reforma agrária, situações de conflito entre proprietário e não proprietário, entre proprietário e índio. Estamos aqui para somar.

O futuro secretário especial negou na mesma entrevista que cuidaria de assuntos relacionados a demarcações de terras indígenas no lugar da Funai:

— É uma questão de ética. Não vou interferir nos assuntos de índios. Nossa função será buscar soluções para conflitos.

Menos de 24 horas depois, a futura ministra da Agricultura divulgou que Nabhan cuidaria de demarcações de terras indígenas, titulações de áreas quilombolas, licenciamento ambiental e reforma agrária. O GLOBO voltou a ligar para Nabhan e ele disse que não estava sabendo dessas atribuições:

—Vou falar com a ministra e lhe dou um posicionamento.

Cerca de três horas depois da conversa, o Ministério da Agricultura divulgou o recuo. Bolsonaro já declarou por diversas vezes que não demarcará “um centímetro” de terra indígena em seu governo. Hoje, estão em aberto decisões da Justiça Federal para demarcar 54 terras indígenas. Além disso, ele defendeu rever algumas demarcações, como a de Raposa Serra do Sol, em Roraima, e explorar minério nessas áreas.