O globo, n. 31179, 18/12/2018. Artigos, p. 2

 

Somos o que fazemos

Chico Alencar

18/12/2018

 

 

“Tentei não fazer nada na vida que envergonhasse a criança que fui” (José Saramago, 1922-2010)

Minha geração, na resistência à ditadura implantada pelo golpe civil-militar de 1964, aprendeu a valorizar o Parlamento: ele, mesmo sendo um escritório dos interesses dominantes, podia reverberar também o clamor dos “de baixo”.

Foram 16 anos na Câmara dos Deputados, marcados por muitas derrotas e algumas vitórias. Quatro mandatos de grande aprendizado, que me autorizam a fazer alguns alertas, às vésperas do novo e preocupante arranjo político nacional. Há um futuro carregado do que já passou.

Representar não é substituir! Mandato político eletivo não é pura delegação, e nenhuma representação é absoluta. Democracia participativa, de alta intensidade, exige permanente busca pela “presentação”, a começar pelo controle popular dos representantes.

Mandato não é construção individual. É fato que a farta assessoria por vezes é mais dedicada às Excelências (herança da cultura nobiliárquica) do que à excelência da função pública. Mas trabalho de equipe é imprescindível na ação voltada para o bem comum. Como repetia nossa saudosa vereadora Marielle Franco, “eu sou porque nós somos”.

Os partidos estão desacreditados. Só que todo mandato é partidário, realizado em bancadas. As legendas, com raras exceções, se tornaram ajuntamentos de interesses escusos, negociatas, instrumentos para o carreirismo. Iniciativas legislativas e ações de governo são compradas por grandes corporações. Aí estão as bancadas das empreiteiras, do boi, da bala, da Bíblia (fundamentalista), do banco. Com essa degradação, a população percebeu a inutilidade das siglas na melhoria de sua vida cotidiana.

O clientelismo é porta para a corrupção. Mandato republicano existe para legislar, fiscalizar os governos e estimular a organização popular. Em vez de fidelizar currais eleitorais para sua própria reprodução, os mandatos têm que contribuir para o ativismo cidadão autônomo. À cultura dos direitos é inerente a responsabilidade social, inimiga da postura egoísta e da indiferença em relação ao outro.

O individualismo é o tijolo do patrimonialismo. Mandato público, em qualquer instância de poder, precisa ter compromisso com a implementação de políticas que ajudem a superar nossa maior chaga: a desigualdade social. Isso pressupõe educação pública democrática de qualidade, saúde para todos, segurança, trabalho, teto, terra. E cuidado ambiental, mobilidade urbana, democratização da cultura e da informação. Objetivos a serem buscados sempre com ética e transparência.

Recomendo a quem ingresse na vida pública que tome uma vacina tríplice: contra o corporativismo, que reproduz uma casta onde prevalecem o cinismo e a hipocrisia; contra a soberba, filha da cultura autoritária e irmã do histórico mandonismo; contra a acomodação, induzida pela tentação do aburguesamento que o cotidiano sedutor nos palácios traz. Impõe-se só aceitar o que for necessário ao exercício do mandato, e publicamente defensável. É imperativo prestar contas nas praças, estar presente na vida diária do povo e nas lutas sociais, em suas inéditas e questionadoras formas. Ali onde estão o lamento e a esperança humana, deve estar a pessoa pública!

Há muitas maneiras de servir à população. Não aceitei a previdência parlamentar e retorno à minha vida de educador. Paulo apóstolo deixou, em carta escrita da prisão em Roma, aproximando-se seu martírio, uma frase valiosa para crentes e não crentes: “combati o bom combate, terminou minha jornada, guardei a fé” (2 Tim 4,7).

Nossa jornada ainda não terminou, mas acredito que, entre erros e acertos, travamos as boas batalhas e mantivemos as convicções, as ideias e causas como fundamento da nossa atuação. O plural não é majestático: sempre apostamos na construção coletiva. Estreitos nós. Gratidão.

N. da R.: A coluna de Merval Pereira volta a ser publicada em 27 de dezembro