O globo, n. 31178, 17/12/2018. Sociedade, p. 17 e 18

 

A rendição

Cristina Fibe

Patrik Camporez

Renato Grandelle

17/12/2018

 

 

João de Deus se entrega em estrada de terra e vai preso em Goiás; defesa pede calma

Dois dias depois de ter sua prisão preventiva decretada, João Teixeira de Faria, de 76 anos, que chegou a ser considerado foragido da Justiça, se entregou à Polícia Civil de Goiás em uma estrada de terra perto de Abadiânia.

Acusado de abuso sexual por mais de 300 mulheres, o médium mundialmente conhecido como João de Deus foi levado no fim da tarde para ase deda Delegacia de Investigações Criminais( Deic ), em Goiânia, onde prestou depoimento por quatro horas. Pouco depois das 22h, foi transferido para o Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia.

No momento da rendição, o líder espiritual, que nega os crimes, afirmou à “Folha deS.Paulo” estar se entregando“à justiça divina eà justiça da Terra”. Segundo seus advogados de defesa, o local isolado foi escolhido para“preservara segurança” de seu cliente.

Durante o interrogatório, o médium negou todas as acusações de abuso sexual. O delegado geral da Polícia Civil de Goiás, André Fernandes, não ficou convencido com os argumentos do acusado e disse pretender indiciar o líder espiritual por ao menos dois crimes: estupro e posse sexual mediante fraude.

Segundo o delegado, a polícia leva em consideração o fato de João de Deus ter explorado a fé das pessoas que o procuraram para obter benefício sexuais.

Foram abertos 15 inquéritos pela Polícia Civil de Goiás para investigar o líder religioso, um para cada vítima já ouvida pelos policiais. O número deve aumentar com os relatos recebidos pelo Ministério Público.

A defesa do médium afirmou que entrará hoje com pedido de habeas corpus em favor de João de Deus. Em entrevista coletiva, o advogado Alberto Toron pediu “um mínimo de sensibilidade” e disse que seria “justo” que o líder espiritual tivesse direito a prisão domiciliar, com o uso de tornozeleira eletrônica.

— Prisão preventiva não é prisão para punir. O princípio é evitar fugir, ameaçar testemunha, evitar que delitos ocorram. Colocar em casa com uma tornozeleira impede novos delitos. A vigilância evita qualquer hipótese de fuga —defendeu Toron.

Sobre as acusações, o advogado afirmou não conhecer ainda todos os depoimentos ,“ e para fazer a crítica é preciso estudá-los ”.

— Precisamos ter tempo para conhecer todos. O Seu João nega as acusações, e nós, com o tempo, vamos poder ter certeza para dizer realmente o que aconteceu. Em respeito a essas mulheres, temos que fazer investigação — afirmou. — À medida que os fatos forem sendo apurados, com as pessoas sendo ouvidas com o crivo do contraditório, vamos poder ver se aquilo tem consistência.

‘Evitar linchamento’

Sobre a demora para que o cliente se entregasse à polícia — o mandado foi expedido na última sexta-feira —, Toron afirmou que “queríamos garantir as condições carcerárias dele para que (a rendição) fosse feita com segurança”.

Ainda segundo Toron, João de Deus, no momento em que se entregou, estava “muito branco, pálido, não comeu”. “Há todo um cuidado para se evitar um mal maior.” O advogado pediu ainda “um pouco de calma para não fazer um linchamento”.

Questionado sobre as movimentações financeiras de R$ 35 milhões que João de Deus fez em suas contas desde a última quarta-feira — informação repassada aos investigadores do caso pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e revelada pelo GLOBO anteontem —, Toron defendeu que “ele apenas baixou as aplicações”.

O advogado negou que o médium ,“coma saúde comprovadamente delicada ”, tivesse a intenção de fugir do país com o montante. Segundo os investigadores das forças-tarefas que atuam no caso, a movimentação milionária nas contas e a suspeita de ocultação de patrimônio aceleraram o pedido de prisão preventiva, feito pela Polícia Civil e pelo Ministério Público de Goiás.

O diretor-geral da Polícia Civil do estado, o delegado André Fernandes, disse que os investigadores ouviram “15 depoimentos consistentes e precisos, de mais de duas horas, com todos os detalhes e circunstâncias” dos abusos, revelados inicialmente no último dia 8, pelo GLOBO e pelo programa “Conversa com Bial”.

— Chama a atenção a singularidade de comportamento. Há um modus operandi comum traçado por diversas vítimas que não se conhecem —disse o delegado.

Fernandes defendeu o sigilo nas negociações para a apresentação voluntária do médium. Segundo ele, o caso tem repercussão internacional, por isso a polícia agiu sem fazer alarde.

Em São Paulo, um dos estados que colaboram com as investigações centralizadas pelo Ministério Público de Goiás, a promotoria levantou a suspeita de que funcionários do centro onde João de Deus atendia desde a década de 1970, a Casa Dom Inácio de Loyola, tenham sido coniventes com os abusos.

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Ex-garimpeiro virou ícone controverso da espiritualidade

17/12/2018

 

 

Ele serviu como alfaiate no Exército durante a juventude e fez fortuna garimpando ouro em Serra Pelada, o “Eldorado” do Pará, no início da década de 1980. Mas foi com a mediunidade que João Teixeira de Faria ganhou fama, atraiu a atenção de multidões —incluindo celebridades e políticos — e se tornou o João de Deus. Ou “John of God”, como também é frequentemente chamado, já que, hoje, cerca de 40% dos que o procuram são estrangeiros, segundo contas do prefeito José Aparecido Diniz, de Abadiânia, cidade onde o líder religioso atende.

Homem de 1,80 metro e dentes de porcelana, o médium mais famoso do Brasil é analfabeto funcional, devido à pouquíssima escolaridade que recebeu em Cachoeira da Fumaça, vilarejo goiano onde nasceu, em 1942. É o mais novo de seis filhos de um casal pobre —pai alfaiate e mãe dona de casa. Frequentou a escola apenas até o equivalente ao segundo ano do ensino fundamental.

“Passei fome e trabalhei muito para ter o que tenho”, relata ele na biografia “João de Deus: um médium no coração do Brasil”, lançada em 2016 pela historiadora Maria Helena Machado — e com venda suspensa pela editora, a Companhia das Letras, após a onda de denúncias.

Embora tenha exercido diversos trabalhos quando jovem, João de Deus, hoje com 76 anos, enriqueceu como garimpeiro. Ele repetiu em várias entrevistas ao longo dos anos que foi “um dos primeiros a chegar” a Serra Pelada, o maior garimpo a céu aberto do mundo, que chegou a reunir mais de 100 mil pessoas atrás de ouro. Reza a lenda que seus poderes paranormais ajudaram-no a encontrar pepitas gigantes.

Fortuna pessoal

Seu patrimônio é desconhecido, mas inclui um garimpo de ouro em Minas Gerais, do qual é sócio, e pelo menos uma fazenda, no valor estimado de R$ 2 milhões. No entanto, estima-se que ele tenha mais de 20 casas em Abadiânia e ao menos quatro propriedades rurais, onde cria gado ou cultiva soja. Sua maior vaidade, admite, são “carrões”. Em uma entrevista à revista “Veja” no ano passado, revelou que é dono de um avião de seis lugares.

O médium é casado com a décima mulher, a advogada Ana Keyla Teixeira Lourenço, 40 anos mais nova do que ele. E tem 11 filhos, dos quais somente a caçula é filha de Ana Keyla.

De formação católica, ele afirma que teve sua primeira experiência mediúnica aos 9 anos de idade. Diz que, aos 16, serviu de médium pela primeira vez na “cura” de uma pessoa. Em 1976, interrompeu suas andanças pelo país para fundar a Casa Dom Inácio de Loyola — santo do qual é devoto e cujo espírito diz incorporar. É lá onde ele realiza dois tipos de “cirurgias espirituais”: as invisíveis, feitas apenas com o poder da mente, e as que incluem cortes com utensílios domésticos, como facas e tesouras, sem o uso de anestesia. A prática o fez ser denunciado por exercício ilegal da medicina e rendeu uma prisão por charlatanismo.

Passou, então, a andar com uma pastinha debaixo do braço, repleta de cartas de delegados e deputados, atestando a idoneidade, a eficácia, a compaixão e a generosidade de suas cirurgias espirituais.

A polêmica é mesmo um marco em sua biografia. João de Deus já foi acusado de sedução de menor, atentado ao pudor, contrabando de minério e até assassinato. Em nenhum dos casos o médium foi julgado culpado.

Devido a pressões de padres da Igreja Católica, João de Deus cogitou, em 1983, mudar a sede de seu centro para outra cidade. No entanto, ele diz ter sido convencido a permanecer graças a um bilhete do médium e ícone do espiritismo brasileiro, Chico Xavier, que disse ser Abadiânia o lugar ideal para o centro: “Prezado João, caro amigo, Abadiânia é o abençoado recinto de sua iluminada missão e de sua paz”, dizia a correspondência.

João não cobra nada pelas consultas e operações espirituais, mas vende os remédios prescritos por ele mesmo e fabricados por uma farmácia de manipulação própria, a JTF (iniciais de seu nome).

A popularidade de João de Deus foi alavancada em 1991, quando a atriz americana Shirley MacLaine se tratou com ele de um câncer na região abdominal. A partir daí, o médium não só se tornou muito mais conhecido no Brasil como também ganhou fama mundial. Passou a atrair turistas vindos de países como Índia, Austrália, Alemanha e Estados Unidos.

A apresentadora americana Oprah Winfrey o visitou em 2012 e disse ter tido uma revelação. A lista de pacientes inclui ex-presidentes da República brasileiros e estrangeiros, entre eles Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, Hugo Chávez, Alberto Fujimori e Bill Clinton. Também já recebeu as apresentadoras Xuxa e Luciana Gimenez, as atrizes Dira Paes e Giovanna Antonelli e a modelo internacional Naomi Campbell —apenas para citar alguns.

O líder espiritual afirma que incorpora 33 entidades. A mais influente seria Dom Inácio de Loyola, padre espanhol que fundou a Companhia de Jesus, no século XVI.

Sem memória

Em entrevista à “Época” durante visita da reportagem ao centro em julho deste ano, ele disse não se recordar de nada do que se passa durante as sessões. Afirmou que “quem cura é Deus”, frase muito repetida por ele ao longo dos anos.

Todos esses espíritos teriam uma única missão: a de tratar doenças que vão de depressão e esclerose até câncer — enfermidade das que mais levam fiéis a Abadiânia.

Em setembro de 2015, apesar de defender a veracidade de suas curas, João de Deus não quis passar por uma “cirurgia espiritual” para tratar um câncer agressivo no aparelho digestivo. Ele se submeteu a uma longa e delicada cirurgia convencional no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, um dos mais renomados do Brasil, onde ficou internado por mais de três semanas.

João de Deus atendia entre 2 mil e 3 mil pessoas por dia, todas as quartas, quintas e sextas-feiras. Isso representa cerca de 20 mil fiéis por semana. A Casa Dom Inácio de Loyola conta com 40 funcionários e 20 voluntários — os chamados “filhos da Casa”.