Correio braziliense, n. 2020250, 30/10/2018. Mundo, p. 16

 

O fim de uma era

Rodrigo Craveiro

30/10/2018

 

 

ALEMANHA » Angela Merkel decide abandonar a liderança do partido União Democrata Cristã (CDU), a partir de dezembro, e não concorrer à reeleição em 2021. Divisões na coalizão de governo, críticas à política migratória e revés nas urnas desgastaram a chanceler

A Alemanha começou ontem a se sentir um pouco mais órfã. A chanceler Angela Merkel, apelidada de mutti (“mamãe”, em alemão), confirmou os rumores divulgados pela imprensa e admitiu que renunciará à liderança da União Democrata Cristã (CDU) — posto ocupado há 18 anos — e à chefia de governo. “Hoje é o momento de abrir um novo capítulo”, declarou Merkel, durante entrevista coletiva em Berlim, em que se mostrou visivelmente emocionada. “Na próxima conferência do partido, em Hamburgo, não me apresentarei de novo como líder da CDU. Tampouco me postularei de novo como chanceler durante outro período legislativo. Este é meu último mandato como chanceler federal. (…) Eu não buscarei qualquer outra posição política ao fim de meu mandato”, afirmou, antecipando a aposentadoria da vida pública em 2021.

Ela destacou que o seu objetivo sempre foi o de “ocupar cargos políticos com dignidade e, um dia, partir com dignidade”. Merkel foi ovacionada por líderes de seu partido, que ficaram de pé, enquanto ela fazia o anúncio.

Desgastada por sucessivas derrotas eleitorais e por rupturas na coalizão com a União Social Cristã (CSU), Merkel citou o fracasso na eleição regional de domingo, no estado de Hesse (centro), como determinante para a decisão. “Não é mais possível agir como se nada tivesse acontecido”, disse. Ainda que a CDU tenha vencido o pleito, com 27% dos votos, a legenda perdeu mais de 11 pontos percentuais em relação à eleição anterior.

“Como chanceler e líder da CDU, sou responsável politicamente por tudo, pelos sucessos e pelos fracassos. Esta quarta legislatura será a última para mim”, desabafou, ao fazer um mea-culpa. Em 14 de outubro passado, os conservadores também amargaram resultados decepcionantes na Baviera, e viram a extrema direita e os ambientalistas progredirem no cenário político alemão.

O processo de sucessão promete ser complicado. A própria Merkel avisou que não indicará o novo líder da CDU durante a conferência de dezembro, em Hamburgo. Os analistas preveem uma disputa entre os adeptos de uma posição mais moderada e os entusiastas de uma guinada conservadora, ante o avanço da extrema direita. Pelo menos três nomes são apontados com probabilidades de ascender ao Bundesregierung (governo federal) e se tornar o próximo chanceler: a atual secretária-geral da CDU, Annegret Kramp-Karrenbauer; o ministro da Saúde, Jens Spahn; e o ex-deputado e adversário político Friedrich Merz (veja quadro). Caso mutti permaneça no cargo até 2021, como prometeu, ela se igualará ao ex-chanceler Helmut Kohl, seu mentor político, que comandou a Alemanha entre 1982 e 1998.

“Essa é uma renúncia em duas etapas. Merkel percebeu que o  poder de revitalizar o próprio partido chegou ao fim. Em dezembro deste ano, ela abandonará a presidência da CDU. Em dois anos, antes da próxima eleição, o posto de chanceler”, explicou ao Correio Ulrich von Alemann, professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Heinrich-Heine (em Dusseldorf). O especialista acredita que Merkel deseja manter o controle sobre o processo de sucessão. “Se isso funcionará, ainda é uma questão em aberto.”

 

Desacordo

Para Christian Volk, cientista político da Universidade Livre de Berlim, o rendimento abaixo do esperado nas eleições regionais em Hesse se deve ao grande desacordo dentro da coalizão CDU-CSU. Ele culpa Horst Seehofer pela crise instalada no governo. Nos últimos sete meses, o ministro da Justiça e líder da CSU pressionou Merkel por políticas migratórias mais rígidas, sob a justificativa de impedir o avanço da extrema direita no país.

Volk afirmou que a chanceler pecou por sobrepor uma política moral e responsável à própria sobrevivência política, quando defendeu uma política de refúgio humanitário e de asilo a serviço dos valores europeus e em face da história alemã. “Tal política valeu a Merkel o reconhecimento dos críticos da esquerda, mas  irritou o eleitorado conservador de direita da CDU, que cortejou a AfD”, alertou o analista, citando a Alternativa para a Alemanha, partido de extrema direita fundado há cinco anos e integrante do Bundestag (parlamento) desde 2017.

De acordo com Volk, a guinada para a direita dentro da coalizão de governo, como uma reação às políticas de Merkel, levou muitos ex-eleitores a acusarem o bloco de atropelar os valores cristãos de solidariedade e de caridade. “A CDU e a CSU também viram o Partido Verde alcançar resultados recordes em Hesse (19,6%) dos votos e na Baviera (17,5%)”, acrescentou.

 

Trechos

As principais declarações da chanceler alemã, Angela Merkel, durante a entrevista coletiva em Berlim

“Como chanceler e líder da CDU, sou responsável politicamente por tudo, pelos sucessos e pelos fracassos.”

“Hoje é o momento de abrir um novo capítulo.”

“Na próxima conferência do partido, em Hamburgo, não me apresentarei de novo como líder da CDU. Tampouco me postularei de novo como chanceler durante outro período legislativo. Este é meu último mandato como chanceler federal.”

“A imagem que a grande coalizão oferece é inaceitável.”

 

Perfil

A líder do mundo livre sai de cena

Angela Kasner nasceu em 1954, em Hamburgo. Ainda criança, mudou-se para a Alemanha Oriental. Aos 23 anos, casou-se com o físico Ulrich Merkel. O relacionamento durou cinco anos e, após o divórcio, manteve o sobrenome do ex-marido. Em 1986, concluiu o doutorado em química quântica. A carreira política teve início em 1991, quando assumiu os ministérios para as Mulheres e a Juventude e do Meio Ambiente, durante a gestão de Helmut Kohl.

Desde abril de 2000, Merkel está à frente da União Democrata Cristã (CDU). Para isso, depôs Kohl, acusado de financiamento ilegal da legenda. Após ascender ao cargo de chanceler em 2005, foi reeleita em 2009 e em 2013.

 

Pontos de vista

Ausência de carisma

“A liderança de Merkel foi séria, pragmática, confiável, com boa capacidade de fazer política. Mas lhe faltaram emoção, paixão e carisma. Estava claro que a CDU sofreria algumas perdas nas eleições regionais, mas não uma derrota acachapante. Isso porque a economia está em boa forma. Mas os eleitores olharam para Berlim e se viram desapontados com o governo de Merkel.”

Professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Heinrich-Heine (em Dussseldorf)

 

Por Chistian Volk

Efeito da derrota

“Por um lado, a decisão de Merkel é a consequência lógica da derrota eleitoral dos cristãos conservadores em Hesse e na Bavária. Por outro lado, ela está iniciando sua despedida da política. Merkel me transmitiu a impressão de relativa calma e não parece se sentir impulsionada por ninguém. Seu comportamento deveria colocar Horst Seehofer (ministro do Interior e líder da CSU), que carrega grande parte da culpa da miséria política da Grande Coalizão.”

Professor de ciência política da Universidade Livre de Berlim

 

Os potenciais sucessores

Quem são os prováveis nomes cotados para suceder Merkel em 2021

 

Annegret  Kramp-Karrenbauer

Secretária-geral da CDU, é a favorita a suceder Merkel. Sua escolha reforçaria o poder na estrutura política de centro-direita. Também governadora do estado de Sarre (sudoeste), goza de forte prestígio no partido. Amiga íntima da chanceler, recebeu o apelido de AKK.

 

Friedrich Merz

Antigo rival de Angela Merkel, o ex-líder sindical e advogado de 62 anos foi membro do Parlamento Europeu (1989-1994), deputado do Bundestag (1994-2009) e ex-chefe do grupo parlamentar formado pela  União Democrata Cristã (CDU) e pela União Social Cristã (CSU).

 

Jens Spahn

Aos 38 anos, o ministro da Saúde do governo Merkel pertence à “jovem guarda” da CDU e é um dos mais contundentes críticos da chanceler. Não poupou ataques à acolhida de refugiados e foi visto cortejando o chanceler austríaco conservador, Sebastian Kurz.