O globo, n. 31167, 06/12/2018. País, p. 4
Menos poder ao vice
Jussara Soares
06/12/2018
Incomodado com entrevistas de Mourão, Bolsonaro tira espaço de general no governo
Em um novo capítulo na disputa interna por protagonismo no futuro governo, o presidente eleito, Jair Bolsonaro, impôs ao seu vice, general Hamilton Mourão, uma espécie de “voto de silêncio”. A recomendação de Bolsonaro foi repassada ao general por meio de alguns dos seus aliados mais próximos: o militar deve adotar uma postura mais discreta e deixar que o presidente eleito concentre os holofotes, sendo o único porta-voz da nova gestão.
Mourão deve ser submetido a um isolamento estratégico no governo, ficando sem atribuições importantes na Esplanada. Recentemente, ao falar de suas possíveis funções no governo, Mourão disse que a “ideia fundamental” levada a Bolsonaro era de que ele assumisse o comando de partes importantes da Casa Civil e da Secretaria-Geral.
O general pretendia comandar a articulação dos ministérios, a área de políticas públicas e até o cobiçado Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) do governo. Em vez disso, o distanciamento entre presidente e vice levaram Bolsonaro a manter o PPI com o futuro ministro Gustavo Bebianno (secretaria-geral da Presidência) e a delegar a gerência das ações de governo a outro general, Carlos Alberto dos Santos Cruz (secretaria de governo).
Pretenso "moderador"
Ao contrário das outras vezes em que Mourão foi desautorizado por Bolsonaro após dar declarações controversas, o impasse atual surgiu do desempenho do vice em entrevistas à imprensa. Segundo assessores da transição, o vice teria provocado desconforto no entorno de Bolsonaro por ofuscar as ideias do presidente ao se apresentar como um “moderador” das falas do presidente eleito.
Foi assim há duas semanas quando, em entrevista ao jornal “Folha de S.Paulo”, Mourão pareceu revisar falas polêmicas dos filhos e do próprio Bolsonaro sobre política externa. Ao comentar as críticas do presidente eleito à China, por exemplo, o general reduziu a gravidade das declarações ao dizer que eram “mais uma retórica de campanha, né?”.
Ele também recomendou prudência a Bolsonaro, ao dizer que “nós podemos comprar as brigas que podemos vencer”. Mourão também pregou menos ímpeto na relação com os Estados Unidos, avaliando que “não podemos descuidar dos outros grandes atores da arena internacional”. Há duas semanas, o deputado Eduardo Bolsonaro posou para fotos com um boné do presidente americano Donald Trump em viagem aos EUA.
Depois de os filhos e do próprio Bolsonaro falarem em mudar a embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, o vice procurou ser mais cauteloso ao tratar do tema: “É óbvio que a questão terá que ser bem pensada. É uma decisão que não pode ser tomada de afogadilho, de orelhada (…) temos sempre que olhar a questão do terrorismo internacional oriundo da questão religiosa”.
Outra da série de declarações de Mourão que incomodaram Bolsonaro veio em outubro, logo depois da vitória no primeiro turno. Ao GLOBO, Mourão deixou claro que não aceitaria o papel de “vice decorativo”. Ao fazer alusão ao desprezo com que foi tratado o então vice-presidente, Michel Temer, no primeiro governo de Dilma Rousseff, o general afirmou que teria participação efetiva no Planalto:
—Eu me vejo como um assessor qualificado do presidente, um homem próximo ali, junto dele, dentro do Planalto, nossas salas serão juntas. Não seremos duas figuras distantes.
Auxiliares da transição avaliam que Mourão cometeu deslizes capitais na relação com Bolsonaro. Além de parecer desautorizar o “núcleo familiar” do presidente eleito, o general, afeito ao trato com a imprensa, passou a desconstruir o estilo de Bolsonaro, que tenta se alinhar ao de Donald Trump na relação com os jornalistas. A avaliação é de que Mourão tenta sobressair ao presidente.
Atritos desde campanha
O sinal mais evidente de desconforto com o vice no clã Bolsonaro veio, segundo auxiliares da transição, do vereador Carlos Bolsonaro. O filho do presidente eleito é o que mais insistiu para que o pai isolasse Mourão de funções importantes.
Na semana passada, a intriga ganhou as redes sociais quando Carlos escreveu, no Twitter, sem citar nomes, que a morte de Bolsonaro “não interessa somente aos inimigos declarados, mas também aos que estão muito perto. Principalmente após sua posse.” Questionado se a mensagem havia sido uma indireta, Mourão se irritou e disse que caberia a Carlos esclarecer.
— Se quisesse ser presidente, teria concorrido a presidente —afirmou.
Nesta semana, o general seguiu recolhido, providenciando a mudança do Rio para Brasília, onde vai se instalar no Palácio do Jaburu. Após publicação de reportagem no site do GLOBO, ontem, sobre o descontentamento do núcleo de Bolsonaro com ele, Mourão usou o Twitter para criticar aqueles que, segundo ele, tentam “criar antagonismos” na equipe do futuro governo: “A mídia tradicional insiste em criar antagonismos na equipe vencedora do pleito. Não conseguirá. Este é o momento do nosso presidente indicar nomes para os ministérios. Ele é o Comandante”.
Os atritos entre o presidente eleito e o vice surgiram ainda na campanha. Com Bolsonaro hospitalizado, Mourão chegou a afirmar que poderia assumir os compromissos eleitorais, incluindo debates, mas foi desautorizado por Gustavo Bebianno.
Mourão limitou-se a participar de eventos fechados, mas sua declarações — como a de que lares apenas com mães e avós são “fábrica de desajustados”—seguiram repercutindo mal. Houve ao menos quatro pedidos, um deles de Bolsonaro, para que o vice fosse comedido nos discursos durante a reta final da campanha.
A relação com o vice nas eras FH, Lula e Dilma
O “decorativo” voluntário
A escolha de Marco Maciel para a vice selou a aliança do PSDB de Fernando Henrique com o PFL, então o maior partido da Câmara. Em dois mandatos, Maciel deixou a marca da discrição — era elogiado justamente por evitar declarações públicas ou opinar em polêmicas do governo. Por oito anos, não entrou em atrito com FH.
O “grilo falante” da economia
Um dos maiores empresários do país, José Alencar aumentou a aceitação de Lula junto ao PIB nacional ao se tornar seu vice. Desde o primeiro mandato, foi uma voz crítica à política monetária do governo. Em entrevistas e discursos, defendia a queda dos juros, embora não tivesse ascendência sobre a área.
Má relação e impeachment
Em 2015, enfrentando rebelião da própria base no Congresso, Dilma Rousseff escalou o vice Michel Temer para a articulação política. Não funcionou. Aliado do então presidente da Câmara Eduardo Cunha, Temer queixou-se em carta de ter sido escanteado, e foi acusado de traição por ajudar a articular a queda da presidente.