Título: Damasco, sob o domínio do medo
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Fonte: Correio Braziliense, 20/07/2012, Mundo, p. 16
De sua casa, no bairro de Al-Rbweh, às margens do Rio Barada, o ativista Rami Abdo Adnan teme pelo início do Ramadã — o mês sagrado dos muçulmanos —, celebrado hoje. A poucos quilômetros do Palácio de Al-Shaab, ele consegue escutar o barulho dos combates, cada vez mais intensos. São 22h36 (16h36 em Brasília) de quinta-feira e a guerra civil chega cada vez mais perto do centro do poder. "Eu posso ouvir os tiroteios e as explosões, que ocorrem na maior parte de Damasco. Há um batalhão disparando foguetes no sopé da montanha que abriga o palácio presidencial. Nós estamos com muito medo. (Bashar) Al-Assad é louco e fará tudo para esmagar o levante", afirmou ao Correio, pela internet, em uma entrevista marcada pela conexão instável. Pela primeira vez, tanques ocuparam o bairro de Al-Quaboun, na parte ocidental da cidade, e dispararam artilharia. O receio de uma guerra aberta levou a uma fuga em massa da capital (leia na página 17).
O temor de Adnan e dos outros sírios procede. Sem a ajuda do Conselho de Segurança da ONU — China e Rússia vetaram uma nova resolução (leia abaixo) — e um dia após o atentado que matou os ministros Dawood Rajha (Defesa) e Mohammed Al-Shaar (Interior), uma fonte dos serviços de segurança admitiu à agência France-Presse (AFP) que o Exército não restringirá as operações. "Esses conflitos extremamente violentos continuarão, para limpar Damasco dos terroristas, no início do Ramadã", revelou. "O Exército decidiu usar todas as armas que possui para finalizar os terroristas." O Observatório Sírio para os Direitos Humanos, um dos órgãos da oposição, anunciou a morte de 250 pessoas ontem, o maior número de baixas desde o início do levante, em 15 de março de 2011. De acordo com a entidade, 155 civis — 44 em Damasco — e 93 militares morreram.
O avanço dos rebeldes do Exército Sírio Livre (ESL) começa a preocupar o governo. A milícia impôs sua presença nos bairros de Al-Medan e de Naher Esha. Na capital síria, ninguém tem certeza sobre o paradeiro do ditador. "Creio que Bashar Al-Assad esteja em Latakia", disse Rami Adnan, voluntário da agência Shaan News Network (SNN), referindo-se à cidade, alauita, situada na costa noroeste. Ammar Kurabi, um dos líderes da oposição no exílio, anunciou a fuga de Al-Assad como verdadeira. No entanto, a tevê estatal exibiu imagens do mandatário empossando o ministro da Defesa, Fahad Al-Freij. Um funcionário da Presidência garantiu à AFP que Al-Assad segue em Damasco. O principal ganho do ESL no front ocorreu na fronteira com a Iraque e a Turquia. Os rebeldes tomaram os postos de Boukamal, perto da cidade iraquiana de Qaim, e de Bab Al-Hawa, ao lado do território turco. Ali, eles destruíram um enorme pôster de Bashar Al-Assad.
Caos
Já passava da zero hora de hoje, em Damasco, quando Khaled Al-Shami, coordenador da revolução no bairro de Kafer Susa, admitiu ao Correio que a situação era "muito ruim". "Nesse exato momento, estamos sob bombardeio nos bairros de Daria, Kafer Susa, Al-Medan, Al-Quaboun e Mazzeh. Tudo está sacudindo. Há muitas explosões, que partem de tanques. Algo novo ocorreu: sentimos o cheiro de dióxido de enxofre. A substância já havia sido usada contra o ESL, para tornar os combatentes mais frágeis, ante a paralisia dos nervos", comentou. Para se proteger de um possível ataque com armas químicas, Khaled e outros ativistas apelaram para o carvão. "A ideia é moer o carvão e espalhá-lo por um tecido úmido, para usá-lo como máscara", comentou. O artifício já estaria sendo utilizado por moradores de Al-Midan.
Com 2 milhões de habitantes, Damasco quase se parece com uma cidade fantasma. A maior parte das lojas do centro baixou as portas, à exceção de padarias e de drogarias. "As faculdades de medicina, literatura, engenharia elétrica e engenharia mecânica da universidade, no bairro de Al-Mazzeh, foram fechadas. Os prédios do governo também não funcionaram hoje (ontem)", comentou Rami Abdo Adnan. Khaled confirmou que as ruas estavam vazias. "Não temos pão nem combustível. Estamos morrendo lentamente", desabafou.
O jornal The New York Times publicou que o governo de Barack Obama se antecipa ao desmoronamento do regime sírio e estuda evitar que o estoque de cianeto, gás mostarda e gás sarin caia em mãos erradas. Thomas E. Donilon, assessor da Casa Branca para a segurança, teria viajado a Israel, a fim de preparar uma intervenção militar na Síria, com o objetivo de destruir essas armas.
E-mails repletos de piadase com pouca informação
O site Wikileaks começou a divulgar cerca de 2,5 milhões de mensagens eletrônicas sírias, das quais 538 foram enviadas pelo ditador Bashar Al-Assad. As correspondências não revelam qualquer segredo de Estado e apenas trocam piadinhas. Os e-mails tiveram trechos publicados pelo site Owni.fr e foram enviados em sua maioria antes do início do levante. Numa delas, de fevereiro de 2010, Al-Assad debocha da conhecida jornalista americana Barbara Walters, que aparentemente perguntou por que as mulheres afegãs continuam caminhando alguns passos atrás de seus maridos, apesar da queda dos talibãs. "A afegã olha a senhora Walters nos olhos e, sem dúvida, responde a ela: por causa das minas antipessoais. Moral da história: por trás de cada homem, existe uma mulher inteligente." Em 20 de outubro de 2010, ele se diverte com piadas sobre casamento: "Um homem de sucesso ganha mais dinheiro do que a mulher pode gastar. Uma mulher de sucesso é que encontra um homem assim".
Ben Ali é condenado à prisão perpétua
O presidente tunisiano deposto Zine Al-Abidine Ben Ali foi condenado à revelia à prisão perpétua pela segunda vez em um mês por cumplicidade no assassinato de manifestantes. Ele foi julgado com 40 oficiais e funcionários de seu regime, incluindo o general Ali Seriati, ex-chefe da segurança presidencial, sentenciado a 20 anos de prisão, indicou o juiz Hedi Ayari do tribunal militar de Túnis. Ben Ali foi o único condenado a passar o resto da vida na prisão. Os outros receberam penas de cinco a 20 anos de prisão. Mais de 300 pessoas morreram durante a revolta popular na Tunísia, entre 17 de dezembro de 2010 e 14 de janeiro de 2011. O levante terminou com a fuga de Ben Ali para a Arábia Saudita.
China e Rússia vetam resolução
"Bashar Al-Assad cometerá massacres em Damasco. Ele verá o veto da Rússia e da China como um sinal verde para prosseguir com as atrocidades." O alerta, feito por e-mail ao Correio, partiu de Ausama Monajed, integrante do Conselho Nacional Sírio, um dos principais órgãos de oposição ao regime. Horas antes, Pequim e Moscou haviam, pela terceira vez, barrado a resolução do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) que previa sanções contra o governo de Al-Assad. O veto compromete a mediação de Kofi Annan, enviado especial da ONU e da Liga Árabe à Síria, e a missão de observadores internacionais.
Vitaly Churkin, embaixador da Rússia na ONU, declarou à rede de tevê CNN que seu país já havia explicado — "clara e consistentemente" — que "não aceitaria uma resolução que abrisse caminho para imposição de sanções e o envolvimento militar em assuntos domésticos da Síria". Apesar de admitir estar "muito preocupado" com a violência, Li Baodong, representante da China, considerou o rascunho da resolução "gravemente problemático", por pressionar somente um lado do conflito.
Enquanto Annan mostrava-se decepcionando com a falta de união do conselho para uma "ação firme e concertada", a Casa Branca condenava o veto e defendia o fim de sua missão. "O fracasso do Conselho de Segurança significa que (a missão de Annan) não pode continuar", declarou Jay Carney, porta-voz da Presidência dos EUA. Ele classificou de "decisão muito lamentável" que Moscou e Pequim tenham barrado o texto. "Não há dúvida de que o futuro da Síria será feito sem Bashar Al-Assad. Seus dias no poder estão contados. Apoiar esse regime, no momento em que chega ao seu fim, representa um erro", avisou Carney. Por sua vez, a União Europeia planeja o reforço de suas sanções contra Damasco e seu embargo sobre o arsenal.
O sírio Ammar Abdulhamid, analista da Foundation for Defense of Democracies (em Washington), alerta que o uso de armas de destruição em massa, por parte do regime de Al-Assad, cresceu de forma exponencial. "A comunidade internacional precisa vigiar a situação cuidadosamente", afirmou ao Correio. Ele defende que o Conselho de Segurança invoque o artigo 42 do Capítulo VII da Carta da ONU, que permite o uso de meios militares para deter Al-Assad. "Qualquer coisa menor que isso reflete uma completa falta de sintonia com a realidade e a disposição de deixar a situação deteriorar até que o país entre em colapso." (RC)
Análise da notícia
Cúmplices do massacre
China e Rússia são cúmplices da matança na Síria. A fidelidade aos negócios firmados com Damasco manchou de sangue as mãos do premiê chinês, Wen Jiabao, e do presidente russo, Vladimir Putin. Sob respaldo de um Conselho de Segurança arcaico e anacrônico, eles preferem fechar os olhos a um massacre que já custou a vida de pelo menos 17 mil pessoas a colocar em risco os contratos assinados com Bashar Al-Assad. A ideologia do capital contaminou dois baluartes do comunismo. Se a comunidade internacional está de mãos atadas, é culpa de Pequim e Moscou, que impedem qualquer ação mais robusta e eficiente contra o regime de Al-Assad.
Por muito menos, a ONU autorizou uma ofensiva militar na Líbia e entregou Muamar Kadafi aos seus algozes. O destino de Al-Assad provavelmente será tão trágico quanto o do coronel líbio. Parece questão de tempo. Até que os rebeldes ponham as mãos no ditador sírio, teremos que digerir as imagens de corpos de homens, de crianças e de mulheres executados em uma guerra na qual muitos jamais pegaram em armas. Uma guerra abastecida pela ganância de duas nações. (RC)