Título: A ONU sob fogo
Autor: Seixas, Maria Fernanda
Fonte: Correio Braziliense, 14/07/2012, Mundo, p. 22

Morte de pelo menos 160 pessoas em povoado indigna opositores e reforça clamor por uma intervenção no país

Um dia depois daquele que está sendo considerado o pior massacre em um ano e meio de revolta contra o regime na Síria — organizações humanitárias contabilizaram pelo menos 160 mortos na aldeia de Treimsa —, o secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, cobrou uma atitude do Conselho de Segurança para conter a violência. Ban afirmou que a "inércia" do conselho, incapaz de aprovar uma resolução firme, equivale "a uma licença para novos massacres", e defendeu a adoção de um texto que defina "consequências" caso Damasco não respeite o plano de paz negociado com o emissário especial da ONU e da Liga Árabe, Kofi Annan. Este, que visitou a capital síria no início da semana, confessou estar "horrorizado" com os acontecimentos e denunciou o uso, por parte do Exército, de artilharia pesada contra uma área civil.

A embaixadora dos Estados Unidos perante as Nações Unidas, Susan Rice, afirmou que o episódio reforça "de forma dramática" a necessidade de medidas punitivas contra o regime. Em comunicado, a secretária de Estado Hillary Clinton afirmou que "a história julgará" o Conselho de Segurança. O Brasil também se pronunciou, condenando em tom mais grave a "repressão violenta" contra a população. "O governo brasileiro insta o governo sírio a interromper imediatamente quaisquer ações militares contra civis desarmados e a cooperar com a Missão de Supervisão das Nações Unidas", diz a nota divulgada pelo Ministério das Relações Exteriores.

O massacre de Treimsa provocou reações dentro da própria Síria, onde manifestantes saíram às ruas de várias cidades para protestar contra a matança e exigir ação por parte da comunidade internacional. As forças do regime, embora sem citar números, confirmaram a ocorrência de "combates" no povoado, mas insistiram que a ofensiva causou baixas apenas entre "terroristas". E acusaram os rebeldes de terem assassinado mulheres e crianças. Confrontos e ataques persistiram ontem, com saldo de ao menos 60 mortos, segundo o Observatório Sírio para Direitos Humanos. Desse total, 32 seriam civis.

Para o opositor Ausama Monajed, membro do Conselho Nacional Sírio e diretor executivo do Centro de Pesquisa e Comunicações Estratégicas, sediado em Londres, existem "toneladas de evidências" de que o governo do presidente Bashar Al-Assad planejou o massacre em Treimsa. "Apenas uma intervenção internacional pode deter esses monstros que seguem com o assassinato de civis. Eles estão dispostos a matar milhares para não perder o poder", lamentou, por e-mail.

O observatório fez relatos detalhados sobre o massacre de quinta-feira, pontuando que dezenas das vítimas foram sumariamente executadas, com armas brancas e tiros à queima-roupa, ou foram mortas por bombas lançadas de tanques de guerra e helicópteros. "Cerca de 30 corpos foram queimados. Cerca de 17 pessoas, na maioria mulheres e crianças, foram mortas quando tentavam escapar da aldeia", relatou ao Correio um integrante da organização, que não quis se identificar.

Protestos

Nas províncias de Dera"a, Idlib, Hama, Reef Dimashq e Deir Izzor, milhares de pessoas saíram às ruas para pedir a queda do regime e o fim da violência. Em Damasco, moradores de pelo nove bairros organizaram manifestações contra o presidente. Por telefone, o jovem Abu Rami, que mora na província de Homs, um dos focos da rebelião, relatou que a situação no país é "aterrorizante". "Por causa dos ataques, as pessoas mal conseguem sair de casa. Faltam água, comida e medicamentos. Quem sai de casa, sai para gritar pelo fim do regime. Precisamos de ajuda", apelou.

No mesmo tom do discurso de Ban Ki-moon, a oposição síria responsabilizou o Conselho de Segurança pela violência, que deixa um saldo de 16 mil mortos desde março de 2011. A Rússia, que vem usando o poder de veto no organismo para impedir uma punição ao regime de Damasco, condenou "com veemência" o massacre e exigiu uma investigação, mas não apontou como responsável o aliado Assad. A despeito das afirmações, zarpou de um porto russo no Mar Ártico com destino ao Mar Báltico um navio carregado com helicópteros de ataque e equipamentos de defesa antiaérea que deveriam ter sido entregues à Síria no mês passado. O navio tinha sido interceptado pela Marinha britânica e retornado à Rússia, que dias atrás anunciou a suspensão do envio de material bélico para Damasco.

"Apenas uma intervenção internacional pode deter esses monstros que seguem com o assassinato de civis" Ausama Monajed, opositor do regime e membro do Conselho Nacional Sírio

Coro contra a intervenção

Com a autoridade de terem sido os primeiros líderes árabes eleitos em processos democráticos, sob o impulso da Primavera Árabe, os presidentes do Egito e da Tunísia reforçaram o coro internacional contra o regime de Bashar Al-Assad, mas rechaçaram a ideia de uma interferência externa. "Estamos ao lado do povo sírio, de sua luta e de sua revolução. Mas somos contrários a uma intervenção militar estrangeira", afirmou o governante egípcio, Mohamed Morsy, empossado no último dia 30. Ele acabava de receber no Cairo o colega tunisiano, Moncef Marzouki, que advertiu sobre as consequências de uma internacionalização da crise síria: "Isso só aumentaria o problema".

Arsenal químico causa alerta Mesmo negando a veracidade dos relatos publicados ontem pelo jornal Wall Street Jounal, segundo os quais o regime sírio teria começado a tirar armas químicas de armazéns em Damasco, o governo dos Estados Unidos advertiu que o governo de Bashar Al-Assad responderá perante a comunidade internacional se não mantiver o controle de seu arsenal químico — considerado um dos maiores do Oriente Médio.

A atenção dos EUA com o estoque não declarado de agentes como cianeto, gás mostarda e gás sarin não é nova. Especula-se que a preocupação emergiu no início do levante contra Assad, há 16 meses. Mesmo em alerta, o porta-voz do Pentágono, George Little, reforçou que a avaliação geral é de que o regime sírio tem ainda total controle das armas químicas. "Nós advertimos contra qualquer intenção de usar essas armas. Isso significaria ultrapassar gravamente o limite", afirmou Little. A reportagem do Wall Street Jounal não menciona os motivos pelos quais o regime sírio estaria movimentando seu arsenal. Os analistas entrevistados levantaram hipóteses variadas: usá-las contra os insurgentes, protegê-las de possíveis inimigos que possam roubá-las ou mesmo provocar medo na população. Há ainda boatos de combatentes rebeldes que teriam apreendido equipamentos de proteção contra agentes químicos, segundo porta-vozes da oposição. "Isso é absolutamente ridículo e falso", rebateu o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores sírio, Jihad Makdissi. "Se os EUA são tão bem informados, por que não podem ajudar Kofi Annan a deter o fluxo ilegal de armas para a Síria, a fim de acabar com a violência e avançar para uma solução política?", provocou. Segundo o site Global Security Newswire, desde o início de 1980 a Síria tem feito esforços para adquirir e manter um arsenal químico. Preocupações com a segurança regional, e mais notadamente a rivalidade com Israel, representam a provável motivação por trás do programa sírio de armas químicas. Os especialistas do site lembram que o país não assinou nem aderiu à Convenção sobre Armas Químicas (CWC), embora tenham declarado apoio à proibição de armas de destruição em massa no Oriente Médio. A justificativa de Damasco é que não pode renunciar unilateralmente às armas químicas enquanto Israel representar uma ameaça para a sua segurança.