O globo, n. 31163, 02/12/2018. Opinião, p. 3

 

A última ceia

Dorrit Harazim

02/12/2018

 

 

O que ficou foi a imagem de dois serviçais do Palácio, a caráter, carregando com brio as bandejas do café da manhã do ainda governador Pezão

Teria sido melhor para a biografia fotográfica de Luiz Fernando Pezão se o ato de sua prisão tivesse ocorrido na casa que pertence ao governador em Barra do Piraí. Mas a ação de captura teve como cenário o pomposo Palácio Laranjeiras, residência oficial do chefe do Executivo do Rio de Janeiro, propiciando um instantâneo memorável. Ao contrário de seus três antecessores, Pezão ainda “estava” governador ao ser preso. Restava-lhe pouco mais de um mês para passar a faixa a Wilson Witzel quando agentes federais adentraram o palacete. Mantida à distancia da ação, a imprensa investiu em tomadas aéreas da edificação do início do século XX para poder acompanhar, pelo menos do alto, a movimentação das viaturas policiais.

Assim, os cidadãos dilapidados de serviços e de salários no mandato Pezão acabaram vendo, muitos pela primeira vez, imagens do palacete em forma de “y”, seus mais de cinco mil metros quadrados, suntuosas fachadas e cúpulas de ardósia azulada. O conjunto emoldurado por frondosa vegetação pareceu duplamente incongruente dado que o governador está sendo acusado de ter desviado R$ 39,1 milhões dos cofres públicos só entre 2007 e 2014, e ter praticado crime de lavagem de dinheiro, corrupção e formação de organização criminosa.

O que ocorreu no interior do Laranjeiras só vazou mais tarde. A saber, que Pezão havia solicitado tempo para tomar um banho e fazer seu desjejum antes de ser preso. Pedidos acordados. Para este petit-déjeuner, Pezão não deve ter se sentado no salão Luis XIV, o mais nobre da casa, construído com detalhes de parede em ouro 24 quilates. Tampouco deve ter se sentado na famosa mesa de 20 lugares da sala de jantar, a mesma onde 50 anos atrás (no dia 13 de dezembro de 1968) foi assinado o Ato Institucional nº5, que suspendeu os direitos políticos dos brasileiros durante a ditadura.

Seja onde foi, este derradeiro repasto em liberdade é página virada. O que ficou foi a imagem fugidia de pouco mais de dois segundos captada do alto, na qual se veem dois serviçais do palácio, a caráter, carregando com brio as bandejas do café da manhã do ainda governador. Será, para sempre, o último retrato de Pezão no poder. “A corrupção é um crime violento, praticado por gente perigosa, e é um equívoco supor que não seja assim”, disse o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso, em seu voto para restringir o alcance do indulto a corruptos presos, concedido pelo presidente Michel Temer. O magistrado disse mais: “A corrupção mata na fila do SUS, mata na falta de leitos, de medicamentos, nas estradas que não têm manutenção adequada. O fato de um corrupto não ver nos olhos a vitima que ele produz não o torna menos perigoso”.

Vale reler a frase caso o leitor domingueiro e distraído não tenha percebido sua dimensão.

Em Jenipapo dos Vieiras, localidade do Maranhão profundo situado a mais de dois mil quilômetros do Rio de Janeiro, a também Policia Federal deflagrou uma operação de busca e apreensão. No mesmo dia e quase à mesma hora em que Pezão fazia sua última ceia palaciana.Acidadeéjovem,acabadecomemorar22 anos de existência, e tem pouco mais de 16 mil habitantes. Mas, ao longo de oito anos, informam os repórteres Julia Affonso e Fausto Macedo, ex-gestores da prefeitura desviaram R$ 92 milhões dos cofres públicos. O que representa uma sangria incalculável para este município com Índice de Desenvolvimento Humano de 0,490, o terceiro menor do Maranhão, e atolado em 5.541º lugar entre os 5.565 municípios brasileiros.

Todos os dias o noticiário nacional está literalmente abarrotado de fatos semelhantes. No resto do mundo não é diferente. Pelas contas do World Economic Forum, o custo anual global da prática representa 4% do PIB planetário. E pesquisas recentes citadas em obra do professor Robert I. Rotberg, da Universidade de Harvard, garantem que 1,6 bilhão de cidadãos são afetados pelas consequências deletérias da distribuição ilícita de bens públicos e recursos nacionais. Rotberg é autor de um livro interessante sobre o tema, apesar do título infeliz: “A cura da corrupção: como cidadãos e líderes podem combater o suborno”, publicado no ano passado. Ele não sugere que a corrupção política, o novo normal em todo tipo de sociedades, inclusive as democráticas, possa ser erradicada através de determinadas etapas e um mesmo receituário. Mas aponta caminhos baseado no seu sólido conhecimento e décadas de investigação em dezenas de países. Leitura oportuna a quem assume o poder.