O globo, n. 31221, 29/01/2019. Artigos, p. 2

 

Risco de corpo estranho

Thiago Bottino

29/01/2019

 

 

O ministro da Justiça, Sergio Moro, defendeu uma alteração na lei para permitir acordos entre o Ministério Público e os réus como alternativa ao processo penal, inspirado no modelo americano do plea bargain: uma negociação onde o réu confessa um crime em troca de uma pena mais branda do que a que receberia se fosse condenado. Para que a sociedade se posicione, é preciso entender as vantagens e desvantagens do modelo, segundo a experiência americana, e como seria a adaptação ao nosso sistema.

A primeira vantagem é a redução de custos. Acordos são mais rápidos porque dispensam intimações e audiências e geram menos gastos com pessoal, material e aluguel de prédios. Ademais, a morosidade do Judiciário no Brasil é ruim tanto no caso de réus culpados (pois demoram a ser punidos) como inocentes (porque ficam submetidos a essa suspeita por anos, até serem absolvidos). Outra vantagem é a voluntariedade. Como é fruto de um acordo, o plea bargain atende ao interesse das duas partes e reduz a quantidade de recursos, aliviando os tribunais.

A primeira desvantagem também envolve custos. O uso em larga escala dos acordos nos EUA (97% dos crimes federais são decididos assim) gerou o aumento de presos, inclusive em infrações leves. Hoje, os EUA são o país com o maior número de encarcerados do planeta e gastam US$ 82 bilhões por ano com prisões. Se o mesmo ocorrer no Brasil, o custo do encarceramento em massa poderá ser superior à economia com pessoal e equipamentos.

Além disso, já se constatou nos EUA a tendência de que o acusado aceite um acordo mesmo quando é inocente. Promotores pressionam e ameaçam os réus para obter acordos. Não se deve duvidar que isso aconteça aqui, decretando-se prisões com a finalidade (não declarada) de obter acordos.

Outra desvantagem é a falta de publicidade. No modelo atual, um juiz precisa indicar por escrito as razões que levaram à condenação e todos podem criticá-las, pois o processo é público. Já no modelo de acordos, as negociações são secretas, feitas a portas fechadas.

A última desvantagem é a falta de controle institucional. Nos EUA, promotores são eleitos ou indicados por pessoas eleitas (presidente ou governadores) e decidem quem será processado (ou não) com base na vontade popular. No Brasil, promotores são selecionados pelo conhecimento técnico, e não por seus valores e opiniões. Portanto, não podem “escolher em nome do povo” nem tomar decisões que acreditem “ser o melhor para o país”. Caso um membro do MP nos EUA tome uma decisão inadequada, ele não será reeleito e pode até ser demitido. No Brasil, membros do MP possuem independência e raramente são afastados, mesmo quando acusam pessoas inocentes ou sem provas.

É preciso que a lei estabeleça mecanismos de controle e responsabilização dos promotores, bem como que casos semelhantes tenham direito a acordos e penas iguais, para evitar arbitrariedade e subjetivismo (outra crítica comum nos EUA).

Entretanto, o mais importante é que esses acordos não envolvam penas de prisão.

Como a prisão tem um custo social altíssimo (pois inocentes também aceitarão acordos), ela não pode ser fruto de uma negociação onde não se examinam provas, e não há possibilidade de defesa. Além disso, aumentar prisões por meio de acordos implodirá nosso sistema carcerário, já superlotado. O remédio acabaria sendo pior do que a doença, porque presídios lotados são um conhecido foco de violência e de fortalecimento do crime organizado. Logo, acordos devem ser usados apenas para penas alternativas à prisão.

Assim como um transplante de órgãos exige uma série de exames de compatibilidade, um “transplante jurídico” também exige que se compreenda que os sistemas jurídicos são diferentes. Introduzir um “corpo estranho” sem ter isso em conta pode simplesmente produzir o efeito inverso, piorando nosso sistema de Justiça.