Título: O jogo de Putin na Síria
Autor: Seixas , Maria Fernanda
Fonte: Correio Braziliense, 23/07/2012, Mundo, p. 15

O presidente russo, Vladimir Putin, costuma dizer que entre seu país e a Síria “não existe nenhum tipo de relação especial”. A afirmação virou uma espécie de escudo para as desconfianças internacionais sobre o posicionamento russo no Conselho de Segurança das Nações Unidas, com repetidos vetos a projetos de resolução que previssem punição ao regime de Damasco ou abrissem caminho a algum tipo de intervenção externa para tirar do poder o presidente Bashar Al-Assad. Especial ou não, a relação bilateral tornou-se um cordão umbilical, com interesses econômicos, geopolíticos e ideológicos — legados da Guerra Fria, que aproximou os dois países. Essa aliança é um dos fatores capazes de ditar por quanto tempo pode se arrastar a guerra civil, que já deixou mais de 17 mil mortos em um ano e meio.

O argumento central de Moscou para sustentar sua posição no conflito sírio é o princípio segundo o qual “ninguém tem o direito de decidir por outras nações quem deve entrar ou sair do poder”. A impressão generalizada entre analistas e observadores, porém, é de que essa atitude está ancorada em interesses, mais do que princípios. A Rússia é a principal fornecedora de armas para Síria, que, em contrapartida, é a segunda maior cliente da indústria bélica russa, entre os 80 países compradores.

A queda de Assad, ou mesmo a imposição de sanções ou de um embargo de armas, afetaria um fluxo de negócios que movimentou US$ 5,5 bilhões em 2006. Moscou perdeu contratos milionários na área com as restrições impostas pelo Conselho de Segurança ao Irã, por conta das desconfianças sobre seu programa nuclear. De maneira semelhante, a intervenção autorizada pela ONU em 2011 contra o ditador líbio, Muamar Kadafi, privou a Rússia de outro bom importador. No caso da Síria, além do setor armamentista, a atuação de empresa se estende a áreas como petróleo e gás natural, irrigação, agricultura e telecomunicações, entre outras atividades.

Estratégia A Rússia, porém, tem muito mais em jogo do que os negócios. É na cidade de Tartous, no litoral sírio, que está a única base naval russa do Mediterrâneo. Trata-se, também, da única instalação operacional para a Marinha russa fora dos limites da extinta União Soviética na região. Graças aos acordos em vigor com Damasco, os navios a serviço do Kremlin têm como aportar para reabastecimento ou manutenção sem retornar aos portos do Mar Negro — de onde o único acesso a outros mares é um estreito controlado pela Turquia, país-membro da Otan, aliança militar liderada pelos Estados Unidos.

“A estação (de Tartous) é também uma base de suprimento militar. Uma ponta de lança fundamental da Rússia no Oriente Médio. Para uma potência com ambições mundiais, é uma comodidade muito importante”, explica o especialista em Rússia Ângelo Segrillo, professor de história do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. Para Rami Abdelraham, presidente do Observatório Sírio para os Direitos Humanos, organização oposicionista baseada em Londres, questões financeiras e estratégicas não deveriam sobrepor-se a considerações humanitárias. “O povo sírio não deve pagar o preço de um jogo regional ou global de equilíbrio de poder e dinheiro. Sem soluções práticas que possam realmente ser implementadas, não vai acontecer nada e a guerra continuará. O principal ponto a focar, agora, é um consenso da comunidade internacional para que o regime de Al-Assad caia”, afirmou, por e-mail.

As pressões na ONU e a violência em escalada na Síria, com os rebeldes enfrentando o Exército também na capital, não parecem demover a Rússia de manter o bloqueio no Conselho de Segurança. O emissário especial das Nações Unidas e da Liga Árabe, Kofi Annan, segue com os apelos para que a comunidade internacional atue unida em favor da implantação de um cessar-fogo, como prelúdio para algum tipo de transição política. “A Rússia tem grande influência (na inatividade do conselho), mas não estou certo de que os eventos serão determinados por ela sozinha. O Irã é um ator. Tem que ser parte da solução. É um país que tem influência e não podemos ignorá-lo”, afirmou Annan.

Batalha por Damasco A tevê estatal síria exibiu ontem imagens das tropas leais ao presidente Bashar Al-Assad avançando contra forças rebeldes — “terroristas”, como são apresentados pelo discurso oficial — em Basatin Al-Razi, um subúrbio de Damasco. Apoiados por tanques e helicópteros, os soldados buscavam recuperar o controle sobre áreas da capital e da segunda maior cidade do país, Aleppo. Ambas se tornaram foco de ferozes combates no fim de semana, e apenas ontem o Observatório Sírio dos Direitos Humanos contabilizou 24 mortes em todo o país.