O globo, n. 31203, 11/01/2019. Artigos, p. 3

 

Mulheres no alvo

Flávia Oliveira

11/01/2019

 

 

Foram quatro assassinatos de mulheres por companheiros ou ex na Região Metropolitana do Rio nos cinco primeiros dias de 2019. A estatística assombrosa — mesmo para um estado que contabiliza média de cinco feminicídios por mês — alertou o Legislativo. A deputada estadual Martha Rocha (PDT) vai propor instalação de Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o assunto. O requerimento está pronto, mas será apresentado à Alerj em fevereiro, com o novo presidente da Casa escolhido e os deputados eleitos em 2018, empossados. Para a comissão decolar, são necessárias 26 assinaturas entre 70 deputados; a bancada feminina, que tinha sete integrantes na legislatura 2015-2018, passará a 12.

Se aprovada, a CPI do Feminicídio será a primeira dedicada a esquadrinhar exclusivamente o assassinato de mulheres no Rio de Janeiro. Entre 2015 e 2016, houve a CPI da Violência Contra a Mulher, de escopo mais amplo. Agora, a intenção é investigar a espiral de agressões que levam ao desfecho mais trágico. E a incapacidade da legislação e das políticas públicas de evitá-las. “Vamos tentar descobrir se as mulheres que terminaram mortas passaram pela rede de proteção do Estado, seja pelo sistema de saúde, por via policial ou jurídica”, diz a deputada e primeira mulher a chefiar a Polícia Civil no estado (2011-2014).

Os dados oficiais sugerem que os números de denúncias, abertura de processos e concessão de medidas protetivas nunca foram tão altos. No ano passado, a Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência recebeu mais de 92 mil ligações no Disque 180, salto de quase 30% sobre um ano antes. No Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ), passou de 111 mil o total de ações relacionadas a ocorrências de gênero, a maior quantidade desde 2014. Também de janeiro a novembro de 2018, quase 22 mil mulheres conseguiram decisões judiciais para protegê-las de ameaças, um recorde. Em todo o ano anterior, foram 19.325 deferimentos.

A pergunta que não desaparece é por que, diante do aumento do acesso à informação sobre direitos e da percepção social crescente do combate à violência de gênero, as estatísticas de feminicídio não arrefeceram. O Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ) contabiliza os registros desde fins de 2016, quando a Polícia Civil incorporou essa classificação ao banco de dados. No último trimestre daquele ano, houve 16 casos; em 2017, 68; em 2018, até novembro, 62. Nos moldes da Lei 13.104/2015 — que qualifica e aumenta a pena dos assassinatos fundados no ódio, na discriminação, no menosprezo ou no sentimento de posse da mulher — são em média cinco mortes por mês no Rio há mais de dois anos.

“Houve um fortalecimento da repressão, mas estamos deixando de trabalhar outra determinação legal, a prevenção por meio da educação, da autonomia feminina e da formação em direitos humanos. Além disso, a crise fiscal levou ao fechamento de centros de atenção à mulher. Tudo isso pode estar justificando o aumento da violência”, analisa a juíza Adriana Ramos de Mello, idealizadora do Projeto Violeta, que acelera a tramitação dos casos de violência doméstica no TJ-RJ.

Tamires Blanco da Silva, Marcelle Rodrigues da Silva, Simone Oliveira de Assis Carvalho e Iolanda Souza foram assassinadas na capital e na Baixada Fluminense, de 1º a 5 de janeiro. As três primeiras morreram na frente dos filhos. Todas foram vítimas de companheiros ou ex, outra característica macabra da violência de gênero. Dois em cada três casos de feminicídios no Rio foram cometidos por cônjuges ou ex; mais da metade, dentro de casa.

A Lei do Feminicídio nasceu da recomendação de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), que se estendeu por um ano e meio, até 2013, no Congresso Nacional. A CPI fluminense, se instaurada, deverá investigar também o desaparecimento de mulheres e os homicídios não tipificados. Em 2017, 313 dos 381 assassinatos intencionais de mulheres não foram agravados pela lei; das 683 tentativas de homicídios, 496 ficaram de fora. Há muito o que aperfeiçoar no tão desejável quanto urgente arcabouço institucional de combate à violência de gênero no Rio. E também no Brasil.