O globo, n. 31208, 16/01/2019. País, p. 6

 

Truques e mentiras por trás do decreto

Bernardo Mello Franco

16/01/2019

 

 

O ministro Onyx Lorenzoni disse que a posse de armas em casa representa tanto risco para crianças quanto a presença de um liquidificador na cozinha. O disparate coroou uma série de mentiras e truques usados para justificar o decreto de ontem.

O presidente Jair Bolsonaro acusou os últimos governos de desrespeitarem o resultado do plebiscito de 2005. Se isso fosse verdade, a venda de armas estaria banida há 14 anos. O comércio continuou na legalidade, como decidiram os eleitores. O que se fez foi impor regras para o registro, sob a supervisão da Polícia Federal.

O Planalto alega não ter chancelado um liberou-geral. No entanto, é exatamente disso que se trata. O decreto libera a posse de armas para quem mora em áreas rurais ou em áreas urbanas “localizadas em unidades federativas com índices anuais de mais de dez homicídios por cem mil habitantes”. Este requisito inclui todos os 26 estados e o Distrito Federal. Seria mais honesto não estabelecer critério algum.

O texto contém outras exigências inócuas. Quem morar com criança, adolescente ou pessoa com deficiência mental terá que providenciar um cofre ou “local seguro com tranca”. Ocorre que não haverá fiscalização. Bastará assinar um papel dizendo que a arma não ficará na gaveta ou embaixo do travesseiro.

Ao esvaziar o Estatuto do Desarmamento por decreto, Bolsonaro aplicou um drible no Congresso, a quem competia mudar a lei. Ele ainda se apressou para assinar a medida antes do dia 1º. A razão é simples: quando os novos deputados e senadores tomarem posse, o ato já será um fato consumado.

Na solenidade de ontem, o presidente fez questão de homenagear os amigos da “bancada da legítima defesa”. Referia-se aos deputados da bancada da bala, sempre às ordens da indústria armamentista.

Um dos campeões do lobby é o ministro Onyx, o do liquidificador. Em 2014, ele recebeu doações eleitorais da Companhia Brasileira de Cartuchos e da Forjas Taurus. O investimento das empresas não foi em vão. O ministro apresentou ao menos três projetos de lei para facilitar a venda de armas no país.

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Bancada da bala quer flexibilizar porte até agosto

Bruno Góes

Amanda Almeida

16/01/2019

 

 

Deputados se articulam para aprovar proposta; Bolsonaro já se manifestou a favor da mudança na lei e até cogitou novo decreto. Para Sergio Moro, porém, tema é ‘muito delicado’ e não está, por ora, na agenda do ministério

O líder da bancada da bala na Câmara, deputado Capitão Augusto (PR-SP), disse ontem que o decreto sobre a posse de armas, assinado pelo presidente Jair Bolsonaro, abre uma janela para a discussão no Congresso Nacional sobre o porte de armas — quando o cidadão é autorizado a carregar consigo, na rua, o armamento. O decreto anunciado ontem só trata da posse, ou seja, o direito de pessoas terem armas em casa.

Hoje, o porte é proibido no país. Ele só é concedido pela PF em casos excepcionais relacionados à atividade profissional de agentes de segurança, depois de um rigoroso e longo processo.

— Agora nós vamos para o porte. Vamos flexibilizar o porte. Vai ser uma das principais bandeiras da nossa bancada. Acreditamos que conseguimos aprovar a flexibilização do porte até agosto — afirmou o Capitão Augusto.

Ontem, após a assinatura do decreto, o presidente indicou, por meio de uma rede social, que poderá adotar novas medidas relacionadas ao tema, embora não tenha mencionado especificamente o porte de armas. “Acabamos com a subjetividade para a compra, que sempre foi dificultada ou impossibilitada. Esse é apenas o primeiro passo”, afirmou o presidente.

Em entrevista ao SBT, em 3 de janeiro, Bolsonaro disse que pretende flexibilizar o porte de armas e disse que poderia, até mesmo, se valer de um novo decreto.

— Com relação ao porte, vamos flexibilizar também. Podemos dar por decreto, mas tem requisitos para cumprir — afirmou o presidente, na entrevista.

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, tem outra opinião. Ontem à noite, em entrevista à GloboNews, ele afirmou que não há projeto em estudo com o objetivo de flexibilizar o porte de armas. E advertiu que o tema é ‘muito delicado’.

—É uma situação diferente. Se houver (no futuro) alguma proposição nesse sentido, tem que ser bem estudada. Esse é um tema muito delicado. A posse é algo mais limitado, oferece menos riscos —disse Moro.

O líder do DEM, Elmar Nascimento (BA), também avalia que o porte de arma ainda precisa ser discutido de forma mais profunda.

Hoje, o Estatuto do Desarmamento é alvo de cem projetos de lei que propõem desde ajustes pontuais até a sua revogação completa. Todos tramitam em conjunto e estão prontos para votação no Plenário da Câmara.

O principal deles é o PL 3.722, de 2012, do deputado Peninha (MDB-SC), que está pronto para ir a plenário. O texto flexibiliza a posse e porte de armas.

“Agora nós vamos para o porte. Vamos flexibilizar o porte. Vai ser uma das principais bandeiras da nossa bancada. Acreditamos que conseguimos aprovar até agosto”

Capitão Augusto (PR-SP), líder da bancada da bala na Câmara

“Com relação ao porte, vamos flexibilizar também. Podemos dar por decreto, mas tem requisitos para cumprir”

Jair Bolsonaro, presidente, em entrevista no dia 3 de janeiro

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Propaganda do Planalto: garantia de ‘um dos mais importantes direitos’

16/01/2019

 

 

Após a assinatura do decreto que flexibiliza a posse de armas no país, o governo do presidente Jair Bolsonaro começou a divulgar em redes sociais, na tarde de ontem, uma campanha sobre a medida. O vídeo publicado começa dizendo que “para garantir um dos mais importantes direitos do cidadão, o governo usou essa arma” e apresenta uma caneta. O texto diz ainda que o decreto “assegura a posse de arma a pessoas para legítima defesa”.

O início da peça publicitária tem o mesmo tom do discurso feito por Bolsonaro durante a cerimônia de assinatura do decreto. Antes de justificar a medida e elucidar quais eram os pontos alterados pelo decreto, o presidente mostrou uma caneta e mencionou que a utilizaria para garantir o cumprimento da decisão do povo no referendo de 2005, em que foi avaliado o Estatuto do Desarmamento.

A propaganda defende que a medida dará liberdade à população para escolher “ter ou não uma arma”. E termina afirmando que “uma democracia se faz com a defesa dos direitos de todos”.

No último sábado, reportagem do GLOBO mostrou que o Planalto encomendou a campanha sobre o tema a cinco agências de publicidade que prestam serviços ao governo. A estratégia de comunicação usará televisão, rádio, mídia impressa, outdoor e redes sociais, com a intenção de parecer um serviço de utilidade pública.

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“Evidências mostram que mais armas aumentam os homicídios”

Melina Risso

16/01/2019

 

 

Não é sobre ser contra as armas, mas todas as evidências mostram que mais armas em circulação aumentam o número de homicídios e, no Brasil, a gente já tem um número muito alto. É importante trazer uma reflexão de que a discussão sobre posse de arma não é uma questão ideológica. É o que as pesquisas estão mostrando. O decreto diz que 100% da população que vive num estado com uma taxa de 10 homicídios por 100 mil habitantes pode ter acesso a uma arma se cumprir os requisitos. Mas sabemos que a violência é superconcentrada: ela não se espalha por todos os lugares da mesma forma.

Quem é a favor da flexibilização acha que ter uma arma em casa dissuade os bandidos de entrarem nas casas, mas não existem evidências. Tudo que olhamos e que já foi estudado não comprova essa tese. Não adianta ficar insistindo porque as pesquisas mostram o contrário.

O mercado de armas é um só, não há um mercado legal e outro ilegal. Toda arma nasce legal. Portanto, é importante que as pessoas que tenham intenção de comprar uma arma reconheçam os riscos de fazê-lo. Nunca foi proibida a posse de arma, sempre foi permitida, mesmo depois do Estatuto do Desarmamento. O decreto está regulamentando e dando maior objetividade para um critério, mas a preocupação é por flexibilizar mecanismos de controle. Há algum tempo, fiz uma pesquisa mostrando as armas que tinham sido apreendidas pela polícia na mão de bandidos. O grande volume foi de armas fabricadas antes de 2003, quando o mecanismo de controle era muito mais fraco. Essa arma permanece, é utilizada no crime. A gente está flexibilizando controles ao invés de caminhar no sentido oposto, que é dar condições para as polícias fazerem investigação correta e coerente. Se há um banco de dados atualizado sobre armas compradas e registradas para tal pessoa e elas mudam de mãos em determinado momento, isso facilita o processo de fiscalização e investigação.

Por outro lado, não acho que teremos uma corrida por armas. Até porque uma pesquisa recente do Datafolha mostra que 61% das pessoas são contrárias à posse de arma. Não é porque que os critérios estão colocados que as pessoas vão comprar. Não tem um efeito imediato. Uma coisa não determina a outra.

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“No cenário de impunidade, é indispensável o direito à legítima defesa”

Fabrício Rebelo

16/01/2019

 

 

Antes de tudo, é preciso entender que o acesso a arma não tem que ser tratado como uma política de segurança pública: não se trata de admitir que o cidadão vai substituir o papel do Estado na repressão ao crime. A realidade brasileira é de grave impunidade. Nossas leis são muito brandas, e o criminoso não tem risco de ser preso, não tem medo da punição estatal. Nós esclarecemos poucos crimes. Quando temos um cenário de criminalidade em que o bandido não tem o receio, a possibilidade de defesa da vítima assume extrema relevância. Toda decisão que tomamos é fruto de uma ponderação entre o risco e o benefício. No caso do criminoso, se os riscos são eliminados,

há um enorme convite para que ele pratique o crime. A possibilidade de acesso à arma, portanto, equilibra essa equação. No momento em que a repressão do estado já falhou, é garantir ao cidadão a possibilidade de autodefesa. É evitar esse destemor que vivemos, os arrastões, os crimes em áreas públicas que são fomentados pela certeza de falta de reação.

Fato é que, nesse cenário de impunidade, é indispensável o direito à legítima defesa do cidadão. Precisamos lembrar também que o Brasil não esteve, durante sua história de regulação de armas, submetido a uma política de desarmamento. Até 1997, a circulação delas era livre, não havia crime de posse e porte irregular. Havia um acesso muito maior da população a esses artefatos e não tínhamos um quadro de homicídios elevado. Mesmo no caso do suicídio, os estudos mundiais mostram que há uma maior associação com os meios, mas não com a variação absoluta. Ou seja, pode aumentar o número de suicídios praticados por armas de fogo devido ao acesso, mas não há mais suicídios. Agora, acredito que o decreto de hoje não pode ser tido como negativo no sentido de flexibilizar armas de fogo, mas é aquém do que se esperava pela campanha, como a questão da efetiva necessidade. Além disso, havia até uma grande expectativa de que o decreto fizesse alguma alteração a respeito das taxas para o registro, uma redução delas. A grande maioria da população vai continuar impedida de ter acesso a armas de fogo pelo critério financeiro. Adquirir a arma por R$ 4 mil ou R$ 5 mil ainda é um valor muito proibitivo. Espera-se que esses custos, sobretudo as taxas, sejam reduzidos.