Correio braziliense, n. 20303, 22/12/2018. Mundo, p. 10
Entreguem-se!
Jorge Vasconcellos e Rodrigo Craveiro
22/12/2018
Foi a mais incisiva condenação do papa Francisco aos sacerdotes que cometem crimes sexuais. “Aos que abusam dos menores, queria dizer: convertam-se e entreguem-se à justiça humana, e preparem-se para a justiça divina”, declarou o pontífice, dois dias depois de a procuradora-geral de Illinois (EUA), Lisa Madigan, denunciar que a Igreja Católica do estado ocultou os nomes de mais de 500 padres acusados de abuso sexual de crianças e desconsiderou as queixas recebidas.
Durante a mensagem anual à Cúria Romana, o pontífice advertiu que a Igreja não vai ignorar as “abominações” dos membros do clero que violaram crianças e adolescentes, afirmou o papa. “Deve ficar claro que, diante de tais abominações, a Igreja não se cansará de fazer todo o necessário para levar à Justiça qualquer um que tenha cometido tais crimes”, acrescentou.
No entanto, Francisco não esclareceu se fazia referência ao sistema judicial interno da Igreja Católica ou à Justiça civil de cada país. No direito canônico, os clérigos não têm, atualmente, a obrigação de denunciar crimes à Justiça civil, exceto se a legislação de sua nação obrigá-los. No passado, muitos padres suspeitos de pedofilia foram discretamente enviados a outras dioceses por sua hierarquia — manobra fiel à cultura do silêncio profundamente arraigada na Igreja.
Apesar do rigor das palavras, o pontífice observou que as pessoas devem diferenciar os verdadeiros casos de abusos sexuais e as calúnias sem fundamento. “É uma tarefa difícil, na medida em que os verdadeiros culpados sabem se esconder, ao ponto de muitas mulheres, mães e irmãs não conseguirem enxergá-los em pessoas próximas: maridos, padrinhos, avôs, tios, irmãos, vizinhos, professores”, ressaltou.
Investigações ou processos abertos nos Estados Unidos, na Europa, no Chile e na Austrália mergulharam a Igreja Católica em uma crise de credibilidade histórica neste ano, enquanto o número de vítimas de agressões sexuais que têm apresentado denúncias é cada vez maior.
O papa convocou, para o fim de fevereiro próximo, os presidentes das conferências episcopais de todo mundo para uma cúpula, na Cidade do Vaticano, voltada à “proteção dos menores”. No âmbito dos preparativos para o evento, os participantes deverão se reunir com vítimas de crimes sexuais cometidos por membros do clero em seus respectivos países.
“A Igreja nunca tentará acobertar ou subestimar nenhum caso. É inegável que alguns responsáveis, no passado, por falta de cuidado, por incredulidade, por falta de preparo, por inexperiência ou por superficialidade espiritual e humana, trataram muitos casos sem a devida seriedade e rapidez”, disse o líder católico argentino. “Isso nunca deve voltar a ocorrer. Esta é a escolha e a decisão de toda a Igreja”, insistiu, diante dos principais prelados da Cúria Romana.
Recado
Francisco reservou palavras especialmente duras para os “homens consagrados, que abusam dos fracos, valendo-se de seu poder moral e da persuasão”. “Eles cometem abominações e continuam exercendo seu ministério como se nada tivesse acontecido. Eles não têm medo de Deus e de seu julgamento, mas apenas de serem descobertos e desmascarados”, denunciou. “Dilaceram o corpo da Igreja”, continuou, antes de frisar que, por trás de uma aparência de “grande amabilidade” e de “rosto angelical”, alguns homens da Igreja “ocultam descaradamente um lobo atroz, pronto para devorar as almas inocentes”.
O papa reconheceu que a Igreja viveu, em 2018, “momentos difíceis”, o que resultou na fuga de fiéis. Neste contexto, ele criticou aqueles que, “por medo ou interesse”, procuram prejudicar a Igreja. Também condenou religiosos que “apunhalam os seus irmãos e semeiam divisões e cizânia”.
Para o empresário Shaun Dougherty, 48 anos, abusado pelo padre George Koharchik dos 10 aos 13 anos, em Johnstown (Pensilvânia), os padres não vão seguir a recomendação do papa para se entregarem à Justiça. “Eu não acredito que os padres obedecerão ao pedido do papa. Eles não escutam a lei de Deus. Por que escutariam o papa?”, duvidou, em entrevista ao Correio. “As autoridades devem tomar o controle do tema. Os países não podem mais confiar na Igreja para proteger adequadamente as crianças dos abusos sexuais. Nós temos de promulgar leis.”
Mike McDonnell, 49 anos, foi abusado pelos sacerdotes John P. Schmeer e Francis X. Trauger, dos 11 aos 13 anos, em Filadélfia (Pensilvânia). “O papa precisa ouvir os sobreviventes. Não escolher a dedo os testemunhos. Ele tem de ordenar os líderes diocesanos a pararem de bloquear as boas legislações que podem ajudar a recuperar as vidas dos sobreviventes. Francisco tem de tornar isso uma prioridade. Nada muda se nada mudar.”
Frases
“Aos que abusam dos menores, queria dizer: convertam-se e entreguem-se à justiça humana, e preparem-se para a justiça divina”
“Deve ficar claro que, diante de tais abominações, a Igreja não se cansará de fazer todo o necessário para levar à Justiça qualquer um que tenha cometido tais crimes”
Papa Francisco, durante a mensagem anual à Cúria Romana
Encontro dos dois líderes da Igreja
O papa Francisco se reuniu, ontem, com o papa emérito, Bento XVI, e lhe entregou um presente. Aos 91 anos, o alemão Joseph Ratzinger vive recluso em um monastério da Cidade do Vaticano desde 28 de fevereiro de 2013, quando abdicou do cargo alegando idade avançada. Os dois têm se reunido esporadicamente para debater temas da Igreja Católica. Até o fechamento desta edição, a Santa Sé não tinha divulgado o teor da nova conversa dos religiosos. Durante seu pontificado (2005-2013), Bento XVI foi pioneiro em se reunir com vítimas de padres pedófilos.
Vozes das vítimas
Mike McDonnell,
49 anos. Abusado pelos padres John P. Schmeer e Francis X. Trauger, dos 11 aos 13 anos, em Filadélfia (Pensilvânia, Estados Unidos)
“A palavra ‘nunca’, usada pelo papa, é perigosa, especialmente para uma organização que se espera que se policie. Para corrigir o futuro, você deve limpar os destroços do passado e punir os responsáveis. Vejo um apelo emocionalmente espumante antes de um dos maiores feriados de que a Igreja depende para obter apoio financeiro.”
Mary McHale,
46 anos, fisioterapeuta. Abusada aos 17 por James Gaffney, padre e professor de uma escola secundária católica em Reading (Pensilvânia, EUA)
“As autoridades eclesiásticas continuam a acobertar porque não são transparentes e não fazem nada que fontes externas têm recomendado. Elas continuam seguindo suas próprias regras. As palavras do papa nada significam se atitudes não são tomadas. Tudo o que temos visto até agora são palavras. Precisamos de ações.”
Shaun Dougherty,
48 anos, empresário. Abusado pelo padre George Koharchik dos 10 aos 13 anos, em Johnstown (Pensilvânia, EUA)
“A promessa de ‘nunca mais’ acobertar os casos é uma grande declaração, se consideramos que a própria Igreja tem encoberto os abusos. O papa tem os livros. Por que ele não os abre e não divulga os nomes que eles acreditam serem críveis? Todos eles! Caso contrário, será apenas mais uma em uma longa lista de mentiras.”
Phil Saviano,
66 anos, morador de Boston. Abusado pelo padre David Holley, entre março de 1964 e setembro de 1965, em Worcester (Massachusetts, EUA)
“Achei a declaração do papa animadora. Ele parece dizer aos padres de todo o mundo: ‘Se você é culpado, deve se arrepender pelos seus pecados e se entregar às autoridades. Caso contrário, não haverá lugar para você na ‘Casa de Deus’. Francisco pediu desculpas pelo modo com que as coisas foram tratadas no passado e prometeu fazer reparos no futuro.”
Juan Carlos Cruz,
jornalista chileno, abusado pelo padre Fernando Karadima Fariña por oito anos
“Parece-me muito bem que o pontífice diga que não ignorará os abusos. Mas a situação é tão grave que creio não haver saída. O que o papa fez no Chile e segue fazendo deveria ser modelo para o mundo. Punir os bispos acobertadores. Se isso não parar, a Igreja será cada vez menor. Os bispos acobertadores de crimes devem abandonar o posto.”
Jim Van Sickle,
55 anos, morador de Pittsburgh (EUA). Abusado pelo padre David Poulson dos 15 aos 17 anos
“Foi um discurso muito importante para as vítimas, inclusive para mim. Precisamos aguardar para ver o que ocorrerá. Não acredito que os padres americanos se apresentarão à Justiça. A Igreja carece de transparência em meu país. Gostaria de ver algum tipo de lei específica para punir esses religiosos. Tudo é uma questão de justiça. Mas estou otimista.”