Correio braziliense, n. 20311, 30/12/2018. Brasil, p. 7

 

Omissão histórica e acúmulo de deficit

30/12/2018

 

 

Célio da Cunha, fundador do movimento Todos pela Educação e assessor especial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no Brasil

A educação se impõe como um desafio para qualquer governante. Elencar obstáculos é tentar remediar falhas históricas, sobretudo em um momento de poucos recursos. Para o pesquisador Célio da Cunha, fundador do movimento Todos pela Educação e assessor especial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no Brasil, os efeitos de uma educação de boa qualidade são multidimensionais. “Contribuem não somente com os setores produtivos, como também trazem avanços à cidadania e à democracia”, explica. Em entrevista ao Correio, ele comenta as dificuldades de custeio do setor e indica possíveis soluções. Confira o ponto a ponto da conversa.

 

LACUNAS ANTIGAS

Historicamente, somente a elite tinha acesso à educação. A omissão do passado foi enorme. Os deficit, que foram se acumulando ao longo da história e chegam aos nossos dias, são elevados. O contingente de analfabetos absolutos e funcionais é alarmante, e a qualidade do ensino, em que se pese alguns avanços, ainda está longe de padrões mínimos aceitáveis. A dívida secular é muito alta e demanda políticas continuadas. Os deficit existentes interferem no desenvolvimento social e econômico e também no cultural. A competitividade entre as nações requer uma média de pelo menos 12 anos de estudo em escolas com padrões mínimos de qualidade.

 

INVESTIMENTOS

À medida que o poder público começou a perceber, nas últimas décadas, a importância da educação para o desenvolvimento, oferecendo mais escolas em todos os graus e modalidades do ensino, o país começou a se desenvolver e a se modernizar. Educação e modernização caminham pari passu. Hoje, por todos os rincões do país, a escola está presente. A matrícula na pré-escola passa de 80%, o ensino fundamental está praticamente universalizado, e o ensino médio teve uma expressiva expansão nos últimos anos. Há mais de 8 milhões de estudantes matriculados no ensino superior; e, no âmbito da pós-graduação, o Brasil tem programas de excelência internacional.

 

INCLUSÃO E QUALIDADE

Os efeitos de uma educação de boa qualidade são multidimensionais. Contribuem não somente com os setores produtivos, como também trazem avanços à cidadania e à democracia. Constata-se, então, que o desafio da educação nacional é tanto de inclusão quanto de qualidade. Só uma política de Estado permanente e estável poderá ajudar a vencer esse desafio. Não se deve perder de vista que a educação não pode, sozinha, operar milagres. Se milagres existem, eles dependem de uma visão sistêmica de desenvolvimento. Dependem, por exemplo, de um sistema político moderno e de uma economia que esteja ao lado da dignidade das pessoas e não de interesses pautados pela corrupção. Pode-se afirmar que entre os setores que mais trabalham pelo bem comum, merecem grande destaque os professores em geral e professoras da educação básica que, mesmo com salários baixos, não medem esforços em prol da educação e da aprendizagem.

 

PROPOSTA DE BOLSONARO

A transferência de recursos do ensino superior para a educação básica não me parece uma política indicada. É certo que as universidades federais desfrutam hoje de uma situação bem mais favorável que a da educação básica em termos de financiamento. A exemplo de outros países, a política correta é a de ampliar gradativamente os recursos destinados à educação básica, mediante, inclusive, à adoção de critérios que possam reduzir as desigualdades regionais em termos de oferta e de qualidade. Nos últimos anos, os investimentos na educação básica cresceram mais do que os da educação superior, o que ajudou a obtenção de índices mais satisfatórios nesse campo. Ademais, se hoje o país conta com recursos humanos de alto nível em várias áreas do desenvolvimento, isso se deve aos avanços da educação superior. Fomentar disputa de recursos entre a educação básica e a superior constitui um equívoco. O que é preciso é o estabelecimento de diálogo franco com as universidades, avaliando-as inclusive, porém mobilizando seu enorme potencial a serviço do país. Para tanto, torna-se necessário modernizar o estado brasileiro. Recursos humanos de alto nível existem à espera de oportunidades para ajudar o país a crescer.

 

CUMPRIMENTO DO PNE

As 20 metas são de grande alcance. Todavia, a crise política e econômica que se instalou tornou impossível atingir o objetivo de investir 10% do PIB (Produto Interno Bruto) em educação. Os recursos previstos não foram viabilizados. O mesmo tinha acontecido com o PNE anterior (2001-2010) que, devido ao veto presidencial à meta de elevar os investimentos e gastos para 7% do PIB, não cumpriu seus objetivos. Idêntico destino teve o PNE elaborado por Anísio Teixeira (1962), em decorrência das mudanças políticas que se seguiram com o regime militar.

 

NOVO FUNDEB

O sucesso do Fundeb foi demonstrado por vários pesquisadores que se debruçaram sobre seus efeitos. Trata-se de uma política que deu certo, o que não significa que não tenha problemas. Desde o lançamento, como Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério), em 1996, configura-se como um dos melhores acertos de política educacional do país. Ele pode e deve ser melhorado, sobretudo com vistas a reduzir as desigualdades regionais em relação à qualidade do ensino.

 

Emenda nº 95/2016

O teto de gastos foi outra política que deu certo. Deve ser aperfeiçoada e continuar. É oportuno citar a experiência do estado do Espírito Santo que, graças a uma gestão moderna, respeitando o teto, conseguiu equilibrar as contas e promover avanços na educação. O exemplo do Espírito Santo mostra que uma boa parte dos problemas do país está no campo da gestão.

 

DESAFIOS

Precisamos melhorar a gestão, a infraestrutura das escolas e a vida dos professores, sobretudo os da educação básica. Como a responsabilidade pelo futuro da educação básica está a cargo dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, é urgente o estabelecimento de regras e políticas de cooperação entre os entes federados, de modo a tornar mais clara a responsabilidade de cada instância.

 

52%

Total da população com idade entre 25 e 64 anos que não concluiu o ensino médio

 

15%

Percentual da população brasileira com curso superior

 

R$ 122 bilhões

Investimento previsto em educação em 2019

 

40,1%

Total de escolas públicas que disponibilizam ensino em tempo integral

 

11,5  milhões

Total de brasileiros analfabetos em 2017 — 7% da população

 

Fontes: IBGE, Ministério da Educação, Ipea, USP, UFRJ e OCDE2

 

Principais desafios

» Currículo pouco interessante para os alunos ou desconectados da realidade;

» Baixa participação dos pais na vida escolar dos filhos;

» Investimentos públicos insuficientes para atender com qualidades as necessidades educacionais;

» Elevados índices de repetência, principalmente em regiões carentes;

» Uso excessivo de métodos de ensino ultrapassados;

» Falta de conexão entre os níveis de ensino (infantil, fundamental e médio); e

» Altas taxas de abandono de alunos devido ao fracasso escolar ou problemas financeiros.