Título: Um golpe letal no coração do regime
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Fonte: Correio Braziliense, 19/07/2012, Mundo, p. 16
As emissoras de tevê do regime passaram a transmitir canções patrióticas. O som de rojões ecoou em várias cidades e as comemorações se estenderam até Trípoli, no Líbano. Um único golpe, preciso e letal, havia acabado de aniquilar parte do círculo mais íntimo do ditador Bashar Al-Assad. "O vulcão entrou em erupção. O núcleo do regime foi infiltrado", anunciou um morador de Damasco, por meio do microblog Twitter. Às 11h10 (5h10 em Brasília), a reunião do gabinete de crise foi alvo de uma explosão que atingiu o quartel-general da Segurança Nacional, na Praça Rawda, no bairro central de mesmo nome. O ataque matou o ministro da Defesa sírio, Dawood Rajha; seu vice, Assef Shawkat (cunhado de Al-Assad); o general Hasan Turkmani, conselheiro de segurança; e o ministro do Interior, Mohammed Ibrahim Al-Shaar. Até o fechamento desta edição, o chefe da segurança nacional, Hisham Bekhtyar, lutava pela vida no hospital, após perder uma das pernas.
O atentado teria sido cometido por um terrorista suicida que portava um cinturão de explosivos — aparentemente, o guarda-costas de uma das autoridades presentes na reunião. No entanto, existe outra versão, segundo a qual a carga de trinitroglicerina e de C-4 teria sido instalada dentro do prédio por um militante do Exército Sírio Livre (ESL).
A milícia, braço armado do Conselho Nacional Sírio (CNS), assumiu a autoria, por meio de seu porta-voz, Qassim Saadedine. "Este é o vulcão sobre o qual falávamos, nós apenas começamos", admitiu ele, em referência à "Operação Vulcão de Damasco e Terremotos da Síria", lançada anteontem. Um guerrilheiro do ESL explicou ao Correio como ocorreu a preparação para o ataque (leia o depoimento). O grupo islâmico Liwa Al-Islam ("A Brigada do Islã", em árabe) também reivindicou a responsabilidade, por meio de um comunicado divulgado em sua página no site de relacionamentos Facebook. "Atingimos a célula chamada de sala de controle de crise, na capital Damasco", afirmou.
Relatos sobre deserções nas forças de segurança e a fuga de militares do bairro de Al-Quaboun indicavam sinais de colapso do governo, enquanto os combates se intensificavam. Os Comitês de Coordenação Locais informaram que 102 pessoas morreram ontem, incluindo 25 em Damasco. "Está claro que o regime de Al-Assad está perdendo o controle da Síria", declarou Tommy Vietor, porta-voz do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca. "É o começo do fim, mas Deus sabe quanto tempo levará até que as forças de Al-Assad sejam varridas da capital", afirmou ao Correio o engenheiro de computação Majd Arar, 25 anos, morador do bairro de Midan, que contou ter escutado a explosão. Vingança
A resposta do regime foi rápida e contundente. Logo após ser empossado, o novo ministro da Defesa, Fahd Jassem Freij, foi à televisão estatal e avisou: "Os efetivos das Forças Armadas não cessarão sua sagrada missão de perseguir esses grupos terroristas e de amputar as mãos de quem ameaçar a segurança da pátria". A morte de Turkmani foi especialmente simbólica para os rebeldes. Estrategista de Al-Assad, era ele o responsável por coordenar a repressão aos rebeldes, que já matou ao menos 17 mil pessoas. O medo de uma vingança desproporcional espalhou rumores pela capital. "Há boatos de que forças do Exército ordenaram a distribuição de máscaras de gás para as tropas do 4º Regimento, que bombardeiam os distritos de Kafar Souseh e Mezzeh", relatou à reportagem Hazrid, um ativista de Damasco, sob a condição de ter apenas o primeiro nome divulgado.
Michael Leeden, especialista em política externa da Foundation for Defense of Democracies (em Washington), não crê que Al-Assad usará o arsenal de cianeto, gás mostarda e sarin. "Não me parece que ele precise dessas armas, pois já está matando milhares de pessoas", comentou. De acordo com ele, o atentado de ontem é "um gravíssimo golpe contra o regime". "O ataque vai encorajar a oposição e estimular deserções. É óbvio que ele denota falta de segurança e uma determinação impiedosa dos inimigos do regime", explicou, por e-mail.
O embaixador da Síria no Brasil, Mohammed Khaddour, denunciou "atos terroristas que visam abalar a nação, seu povo e sua segurança". "Os países que apoiam esses atos terroristas devem parar imediatamente de fornecer esse apoio e dar um basta a todos os crimes que já cometeram", declarou.
Na tentativa de interromper a carnificina, a comunidade internacional tenta uma saída negociada. Os presidentes dos EUA, Barack Obama, e da Rússia, Vladimir Putin, concordaram com a necessidade de uma transição política na Síria, mas admitiram divergências. O chanceler Serguei Lavrov reiterou a oposição de Moscou a sanções contra o regime sírio. A votação de uma resolução, por parte do Conselho de Segurança da ONU, foi adiada para hoje.
Por e-mail, Ausama Monajed, membro do CNS, defendeu uma intervenção da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e de tropas da Liga Árabe. O opositor sírio considerou o atentado em Damasco sintomático e previu desdobramentos. "Há centenas de deserções em todo o país. O regime deve retomar o controle de Damasco, mas vai perder o norte, o sul e o leste da Síria. Esperamos a intensificação das operações militares, por parte de Al-Assad, e mais massacres cometidos pelas milícias do ditador", disse ao Correio.
Depoimento Disfarce e precisão
Huthaifa
"Nós planejamos a operação de hoje (ontem) há cerca de dois meses. Tudo dependia da inteligência e de pessoal disfarçado dentro do QG da Segurança Nacional. Tentamos implementá-la por três vezes, mas não havíamos obtido sucesso. Os alvos eram membros da célula de crise, que trabalha para suprimir a revolução. O ataque não foi documentado por meio de vídeo ou áudio. Alguns de nossos homens colocaram explosivos no teto da sala. Tudo foi monitorado por uma sala de reunião do Exército Sírio Livre, em um órgão da segurança interna, situado em uma casa na Praça Rawda. O explosivo foi detonado por controle remoto, após confirmarmos a presença dos alvos ali. Com a detonação, o teto ruiu e eles morreram sob os escombros. Nossa operação dará ímpeto às forças da revolução e ao Exército Sírio Livre. Ela marcará um racha no Exército (de Al-Assad) e o início de uma completa ruptura de sua gangue criminosa."
Diretor do Departamento de Mídia do Comando Militar do Exército Sírio Livre (ESL) em Damasco Codinome do militante
Três perguntas para:
Paulo Sérgio Pinheiro, coordenador da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas sobre a Síria
Como o senhor analisa o agravamento da violência na Síria e o atentado contra a cúpula do regime? Isso mostra a vulnerabilidade do governo. Mas engana-se quem pensa que se trata do começo do fim. O atentado é uma demonstração — dependendo do que efetivamente se tratou —, ou da infiltração no aparelho do Estado ou da melhoria na capacidade militar do Exército Sírio Livre e dos grupos armados ou da presença de jihadistas.
O governo de Al-Assad prometeu "amputar as mãos de quem ameaçar a segurança". Como vê isso?
É a retórica de um governo pesadamente atingido no seu centro de poder. Isso não significa que o governo recorrerá a armas químicas — aliás, o regime possui um grande estoque. O governo deverá continuar os ataques em bairros e cidades que abriguem os grupos armados.
De que modo o Conselho de Segurança da ONU deve se portar neste momento? É preciso que seja votada uma resolução, pois os mandatos de Kofi Annan como enviado especial e da missão de observadores se encerram amanhã. Os países têm que chegar a um consenso para evitar eventuais vetos da Rússia e da China. Não existe solução mágica. O horizonte da solução passa pelo Plano Kofi Annan — o ponto crucial é a suspensão das hostilidades pelas duas partes. Continua não existindo outra solução, se não política e diplomática. A situação é gravíssima, pois o conflito entrou na fase de um conflito não internacional armado, o que pode se chamar de guerra civil. (RC)