O globo, n. 31198, 06/01/2019. País, p. 7

 

Michelle indicou secretária nacional da pessoa com deficiência

Bela Megale

06/01/2019

 

 

Destaque no dia da posse de Bolsonaro, primeira-dama emplaca pauta própria e presença no governo federal

Foram apenas dois minutos de discurso no Parlatório do Palácio do Planalto — feito em língua de sinais — durante a posse do presidente Jair Bolsonaro. Mas o tempo foi suficiente para a primeira-dama Michelle de Paula Firmo Reinaldo Bolsonaro mostrar a que veio. Discreta e com grande influência sobre o marido, ela foi a responsável por cunhar uma das principais bandeiras sociais da campanha dele, que terá destaque também no governo federal: a inclusão dos surdos.

Na primeira semana de governo, Michelle emplacou nomes na Esplanada como Priscila Gaspar na Secretaria Nacional da Pessoa com Deficiência, subordinada ao Ministério dos Direitos Humanos. Surda e ativista da causa (veja quadro ao lado), Priscila também foi uma das amigas da primeira-dama escolhidas para trabalhar como tradutora da língua de libras na campanha do capitão reformado. Além dela, outros surdos ocuparão postos no Ministério da Educação graças a Michelle.

— Se não houvesse a Michelle, Bolsonaro não teria se envolvido nessa causa. — disse Elizangela Castelo Branco, amiga da primeiradama que atuou como tradutora em libras na posse e também na campanha. Integrante da Igreja Batista Atitude, no Rio, Elizangela foi uma das convidadas de Michelle para o primeiro almoço na Granja do Torto depois da oficialização de Bolsonaro como presidente. Animação não faltou, com direito a mergulho de uma das presentes na piscina, com roupa e tudo.

O roteiro também incluiu tour pelo Palácio da Alvorada e Palácio do Planalto, tudo devidamente registrado e compartilhado em redes sociais pelos participantes. Uma delas descreve a biblioteca como a “da Bela e a Fera” e a mesa de jantar como “a do Shrek". Parte do grupo ainda teve dia de princesa na Granja do Torto horas antes da posse. Cinco profissionais, entre maquiadoras e cabeleireiras, passaram cerca de seis horas preparando a primeira-dama e suas amigas para a cerimônia em um salão reservado ao grupo. Nenhuma das contratadas pertencia a salões estrelados de Brasília.

Na alegria e na tristeza

Michelle começou a se preparar antes das 7h com a colocação de apliques no cabelo e foi a única que teve profissional exclusiva. Para a filha mais nova, pediu um penteado “bem natural”, com um lacinho. No meio da manhã, deu uma pausa rápida nos preparativos para ensaiar o discurso em Libras que faria em poucas horas. Bolsonaro entrou só uma vez no espaço para falar com a mulher, mas logo foi alvo de selfies das cabeleireiras que arrumavam o grupo, todas devidamente postadas.

—Ela foi muito simpática, falou com todos. Queria uns cachos soltos no cabelo dela, mas ficou insegura de desmanchar e daí encontrou aquela solução de prender um pouco. — contou Priscila Florêncio, uma das responsáveis por embelezar o grupo que também garantiu sua foto.

Apesar da mudança de vida, quem tem contato com a primeira-dama garante que o comportamento discreto não mudou com a mudança para o Alvorada, assim como a devoção pelo marido. Evangélica, Michelle mudou de igreja em meados de 2017 devido às brigas que o pastor Silas Malafaia teve com seu marido. Ela deixou a Assembleia de Deus Vitória em Cristo, de Malafaia, e migrou para a Atitude, onde passou a se envolver com a inclusão de surdos, aprendendo a tradução em língua de sinais. O pastor Malafaia ficou ressentido com Bolsonaro depois que foi indiciado na Operação Timóteo pela Polícia Federal. Investigado por suspeita de lavagem de dinheiro em um esquema de cobranças de royalties da exploração mineral, Malafaia esperava que o amigo saísse de maneira enfática em sua defesa, o que não aconteceu.

—Ela não chegou a falar comigo que era esse o motivo, mas eu sei. Sabe como é né?

O feminino é mais emotivo, e o masculino mais racional — disse Malafaia ao GLOBO. Foi o pastor quem celebrou o casamento religioso do presidente com Michelle em 2013 a convite da primeira dama. A festa ocorreu seis anos depois que eles haviam firmado o matrimônio civil pouco depois de se conhecerem na Câmara dos Deputados. Na época, Bolsonaro estava em seu quinto mandato como deputado federal pelo Rio de Janeiro, e Michelle trabalhava como assessora parlamentar na Câmara. Ela atuou em dois gabinetes de deputados e, depois que conheceu Bolsonaro, foi designada para a liderança do PP, na ocasião o partido do hoje

presidente. Ela teve um aumento de salário, mas foi exonerada poucos meses depois de um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre nepotismo na administração pública. Michelle descreveu o marido, a quem costuma chamar de Messias, como “príncipe” em entrevista para um programa religioso após a eleição:

— Todos esses rótulos vão cair por terra porque meu marido não é essa pessoa. Meu marido é um príncipe. Ele é totalmente diferente dentro de casa. A língua brasileira de sinais ganhou destaque na largada do governo Jair Bolsonaro, incentivada pela primeira-dama, Michelle, que até discursou em libras na posse do marido.

A atenção desperta agora a expectativa de educadores, intérpretes e pessoas com deficiência auditiva — são 10 milhões no Brasil — que reconhecem ser longo o caminho até uma política eficiente para surdos. Os principais obstáculos esbarram na educação. O ensino de libras não é obrigatório no sistema público, e a lei de inclusão, que pressupõe a presença de intérpretes em salas de aula regulares, não é garantia efetiva nas escolas.

A língua brasileira de sinais foi reconhecida como tal, por lei, em 2002. Já o reconhecimento da profissão de intérprete em libras veio em 2010. O projeto, curiosamente, é de autoria da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), que, em 2003, ouviu do então deputado Bolsonaro que “não merecia ser estuprada” por “ser muito feia”. Com a ascensão de Bolsonaro ao Planalto e a adesão voluntária à causa de Michelle, a demanda por intérpretes em eventos oficiais deve aumentar, embora a visibilidade exponha também um ponto sensível: não existe um padrão de formação de intérpretes em libras.

— Falta fiscalização no cumprimento da lei de inclusão em classes regulares e na preparação dos intérpretes. Muitos se formam em cursos de 30 horas, insuficientes para dominar a língua e as técnicas de interpretação. Isso desanima um aluno, pode levar à evasão escolar — diz Miriam Caxilé, educadora e intérprete em libras no Centro de Educação para Surdos Rio Branco, em São Paulo, que oferece graduação em Pedagogia e aulas em libras até o quinto ano do Ensino Fundamental (os alunos podem continuar a educação no colégio Rio Branco com a ajuda de intérpretes).

Um abismo

A comunidade de professores, pesquisadores e surdos reconhece alguns avanços nos últimos anos. Implantaram-se cursos de Letras-Libras e, em 2017, o Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, passou a ser oferecido em libras. Mas há críticas, também, para uma “inclusão generalizada” que levou ao fechamento de várias escolas de surdos, que passaram a outras nem sempre com intérpretes.

— Existe um abismo hoje na relação com essa população por desconhecimento. Há a barreira da comunicação, preconceito, assistencialismo. Precisamos de educação bilíngue para as crianças surdas, que a língua de sinais se torne disciplina curricular nacional, como o inglês ou o espanhol. Vamos aproveitar e lutar por políticas públicas melhores —afirma Miriam. Uma sugestão apresentada ao Senado em março do ano passado por uma pedagoga por meio do Portal eCidadania, que pedia transformar libras em disciplina obrigatória nas escolas públicas do país, foi rejeitada em dezembro.

Em reunião da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), a relatora Ana Amélia (PP-RS) orientou que a sugestão fosse encaminhada ao Poder Executivo, “a quem cabe a iniciativa desta matéria”. Educadores, profissionais da área e surdos esperam que o tema seja retomado na nova gestão, assim como uma formação mais rigorosa para intérpretes. Já a recém-anunciada extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), voltada, entre outros temas, aos surdos, parece não causar alarde por enquanto.

O novo Ministério da Educação, comandado por Ricardo Vélez Rodriguez, anunciou outra subpasta, chamada Modalidades Especializadas.

—Essa não é uma questão de primeira-dama ou segundo escalão de ministério ou secretaria. É interministerial. Temos 22,7% da população brasileira com alguma deficiência. É preciso ter um governo que acredite na igualdade de todos e no direito a ter respeitada sua diferença — afirma Teresa Costa d'Amaral, superintendente do Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficiência (IBDD). Segundo ela, o país tem uma das melhores legislações das Américas em reafirmar os direitos da pessoa com deficiência, mas “tudo está por fazer” na construção de políticas públicas.

— O mais urgente é uma política de educação inclusiva. Não adianta ter intérprete de libras se o surdo não consegue se comunicar. Nem intérprete na televisão se a pessoa com deficiência não sabe libras. É preciso ter (legendas) closed caption, sinais sonoros nas ruas para cegos —sugere.