O globo, n. 31196, 04/01/2019. Sociedade, p. 25

 

'Nova era' de divisão de gênero

Ana Paula Blower

Natália Portinari

Paula Ferreira

04/01/2019

 

 

‘Menino veste azul, menina veste rosa’, defende ministra dos Direitos Humanos

Em vídeo gravado anteontem, dia em que tomou posse, a nova ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, bradou que “menino veste azul, e menina veste rosa”. Em tom de comemoração, rodeada de apoiadores e sob aplausos, afirmou:

— Atenção, atenção: é uma nova era no Brasil! Menino veste azul, e menina veste rosa! —exclamou, sorrindo e dando pulos, enquanto os gestos eram registrados por celulares.

Após a repercussão negativa da frase, a ministra disse que se tratava de uma “metáfora contra a ideologia de gênero” e afirmou que “meninos e meninas podem vestir azul, rosa, colorido, enfim, da forma que se sentirem melhor”. A justificativa não foi suficiente para abafar as críticas.

Ao assumir o cargo, na quarta-feira, ela já havia afirmado publicamente que, no novo governo, “menina será princesa e menino, príncipe”.

A psicóloga Renata Bento, especialista em criança e adolescente, explica que a construção de gênero de uma criança é ampla. No caso da sexualidade, ela diz ainda que não é uma escolha consciente relacionada a padrões como “azul e rosa”.

— A sexualidade é muito mais ampla do que um padrão específico. A construção de gênero é algo inconsciente e que ocorre de modo involuntário. Portanto, qualquer forma de opressão que invalide o nascimento de um sujeito como ele é e como ele irá se constituir para ele próprio é uma forma de aprisionamento emocional. A criança deve crescer num lar funcional que lhe ofereça oportunidades para se desenvolver como ser humano. Cada família tem seu modelo particular de educar seus filhos —afirma.

'Prejuízo à igualdade'

Para Lindinaura Canosa, da Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro (SPCRJ), a afirmação da ministra é um “desserviço” aos avanços da sociedade em relação à igualdade.

— Atendo famílias com múltiplas configurações e nas quais não está em jogo se é rosa ou azul. Também não tem mais lugar nem graça a brincadeira de príncipe e princesa. Dentro de uma organização social igualitária, é um insulto a verticalização. Isso aponta para a submissão e afronta o direito de escolher qualquer cor —pontua a psicanalista.

Para Daniela Tófoli, diretora de grupo da Editora Globo, responsável por marcas como a “Crescer” e autora do livro “Pré-adolescente —Um guia para entender o seu filho”, cor de menina ou de menino não é uma questão para as crianças, mas um estereótipo construído por adultos e pela moda ao longo dos anos.

— Quando vemos uma pessoa falando isso, parece alguém que parou no tempo. Por que meninos têm que usar azul? No que se baseia essa fala? Ela tem responsabilidade pelo que diz. Isso não é uma questão feminista, é de direito fundamental da infância, toda criança tem direito de brincar e vestir o que quiser.

Na opinião de Denise Carreira, doutora em Educação pela USP e defensora do direito à educação de meninas e mulheres do Fundo Malala, a declaração é preocupante e reforça ideias que estão na base de problemas graves como a violência doméstica.

—É algo assustador, porque demonstra desconexão com os avanços da sociedade brasileira, em especial das mulheres, nas últimas décadas. Temos um currículo escolar ainda muitos exista, que reafirma lugares tradicionais de gênero eque estão naba seda violência doméstica. Não é à toa que o artigo 8º da Lei Maria da Penha estabelece a educação como área estratégica.

Em nota, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) repudiou a fala da ministra. Segundo a entidade, a afirmação é “uma clara demonstração de sarcasmo contra o avanço das discussões sobre diversidade de gênero”. Segundo a Antra, a fala é motivada por ideologias religiosas e ameaça o estado laico e os direitos da população LGBT.

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No início do século XX, tons tinham significados inversos

04/01/2019

 

 

 Recorte capturado

 

 

O azul não foi sempre considerado uma “cor de menino”; nem o rosa, “de menina”. De fato, até o início do século passado, era o contrário. O rosa era a cor masculina por sua semelhança ao vermelho e ao sangue, passando a ideia de “força”. O azul, por sua vez, tinha como mensagem a “delicadeza”.

Autora do livro “Pink and blue: telling the girls from the boys in America” (em tradução livre, “Rosa e azul: diferenciando meninas de meninos nos EUA”), a historiadora Jo B. Paoletti afirma que, até a Primeira Guerra Mundial, prevaleciam os tons pasteis. “A partir daí, o rosa passou a ser uma cor associada à masculinidade, era um vermelho aguado”, escreve ela em seu site. Em 1914, o “Sunday Sentinel”, um jornal americano, aconselhou as mães a “usar rosa para o menino e azul para a menina, se a pessoa fosse uma seguidora de convenções”.

A mudança para rosa para meninas e azul para meninos aconteceu somente após a Segunda Guerra Mundial. “O conceito de igualdade de gênero emergiu e, como resultado, reverteu a perspectiva sobre como o azul e rosa eram associados a meninos e meninas”, revela a historiadora, lembrando que produtos universalmente populares, como a Barbie e a Hello Kitty, treinam as meninas a usarem a cor rosa para parecerem femininas.

Além disso, em meados da década de 1980, a ultrassonografia passou a apontar o sexo do bebê, fazendo com que os pais começassem a montar o enxoval das crianças, comprando as roupas de acordo com a cor que associavam a meninos e meninas. Até então, usava-se principalmente o branco. Foi nesse momento que o mercado, de modo definitivo, selou a “divisão” entre essas cores.