Correio braziliense, n. 20298, 17/12/2018. Mundo, p. 12

 

Marcas do apartheid

Jorge Vasconcellos

17/12/2018

 

 

ÁFRICA DO SUL » Supremacistas brancos protestam contra o governo por expropriar terras, sem compensação, para devolvê-las aos negros, e denunciam assassinato em massa de fazendeiros. Para eles, fenômeno é uma “retaliação violenta” à segregação racial

Vinte e quatro anos depois do fim do regime de segregação racial do apartheid, o movimento supremacista branco da África do Sul, liderado pelo grupo AfriForum, promove uma campanha internacional para denunciar o que considera uma retaliação violenta da população negra e do principal representante dessa maioria no país — o governo do presidente Cyril Ramaphosa, do partido Congresso Nacional Africano (CNA). Com simpatizantes de peso, como o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o ministro do Interior australiano, Peter Dutton, a mobilização alerta para a ocorrência de “assassinatos em massa de fazendeiros brancos” e protesta contra a proposta do governo de expropriar terras, sem compensação, com o objetivo de devolvê-las aos negros, cujas propriedades foram confiscadas durante a dominação britânica e o apartheid.

Na África do Sul, segundo auditoria governamental divulgada este ano, propriedades rurais mantidas por indivíduos correspondem a 37 milhões de hectares (30,32% do território do país). Dessas áreas individuais,72% pertencem aos brancos, embora eles representem, conforme censos oficiais, apenas 9% da população. Restam aos negros — 80% dos habitantes do país — 4% dessas terras.

À época da colonização, os negros foram segregados nas periferias das cidades e em reservas rurais, conhecidas como “bantustões” (terras natais). Em 1913, uma lei os proibiu de adquirir terras fora das reservas — a política viria a ser reforçada, décadas mais tarde, pelo Partido Nacional e seu sistema de apartheid. Atualmente, essas áreas delimitadas ocupam 13% do território do país e abrigam cerca de 17 milhões de pessoas (29% dos sul-africanos), a maioria dedicada a culturas de subsistência em pequenas fazendas comunitárias.

A defesa da expropriação de terras sem compensação foi lançada pelo partido de ultraesquerda Combatentes da Liberdade Econômica (EFF) e acolhida pelo CNA, mesma legenda do ex-presidente Nelson Mandela, herói da luta contra o apartheid. Em novembro, o Comitê Conjunto de Revisão Constitucional da Assembleia Nacional recomendou a alteração da Seção 25 da Constituição para permitir esse tipo de expropriação, com a justificativa de interesse público.

A mudança significaria o abandono de um modelo de reforma agrária no estilo “vendedor interessado, comprador interessado”, o qual não não se mostrou eficaz ao longo dos últimos anos. Até 2014, apenas 8% das terras foram transferidas, quando a meta era 30%.

 

Emenda

O Comitê recomenda que a Assembleia Nacional redija o texto de uma Emenda Constitucional, em um processo aberto à participação popular e com prazo para ser concluído antes das eleições gerais de maio de 2019. A Emenda precisará dos votos de dois terços dos legisladores para ser aprovada. Para a oposição, liderada pela Aliança Democrática (AD), a proposta do governo poderá afastar investidores. Na sociedade civil, o lobby AfriForum alerta para o risco de as terras ficarem improdutivas e cita o exemplo do vizinho Zimbábue, onde o governo autoritário do ex-presidente Robert Mugabe usou a força para fazer as expropriações. O resultado foi catastrófico, com queda na produção agrícola, prejuízos econômicos e forte pressão internacional.

Em entrevista ao Correio, Dirk Kotze, professor do Departamento de Ciências Políticas da Universidade da África do Sul, afirmou que a expropriação de terras não é o melhor caminho para a redução da pobreza no país e sugeriu que interesses eleitorais estejam por trás da proposta do governo. “A reforma agrária é apresentada como panaceia para o desenvolvimento econômico e a redução da pobreza. No entanto, a maioria dos sul-africanos está urbanizada e, portanto, nosso futuro não está no desenvolvimento rural, mas na melhoria da educação para empregos no setor formal”, disse. “A questão da desapropriação, infelizmente, é diretamente relevante para a competição entre os principais partidos antes da eleição geral do próximo ano.”

Colega de Kotze na Universidade da África do Sul, o cientista político Everisto Benyera defendeu a proposta do governo, mas disse que uma má implementação pode colocar tudo a perder. “A necessidade de redistribuir terras não apenas na África do Sul, mas em todos os países colonizados, é uma questão que precisa ser resolvida o quanto antes”, declarou ao Correio. “O programa de reforma agrária no Zimbábue foi um programa muito bom e mal implementado. Dadas as atuais insinuações de captura do Estado, é muito difícil argumentar que o programa de reforma agrária na África do Sul, por mais bem intencionado que seja, beneficiará as famílias pobres pretendidas e não os politicamente poderosos e os seus camaradas de elite”.