O globo, n. 31212, 20/01/2019. País, p. 4 e 5

 

Armas mataram 600 mil desde 2001

Marco Grillo

20/01/2019

 

 

Tiros são responsáveis por uma morte a cada 14 minutos

Brasil registra, em média, 37,2 mil assassinatos todos os anos provocados por armamentos de fogo e que representam 70% de todos os homicídios. Especialistas alertam que mais armas em circulação podem provocar mais mortes

Ao tornar mais fácil o acesso às armas de fogo, o governo federal trouxe para o debate um tema que apresenta números tão expressivos quanto alarmantes. Entre 2001 e 2016, segundo dados do Ministério da Saúde, quase 600 mil pessoas — 595.672 —morreram no país vítimas de disparos, o que representa 70% do total de homicídios no período. Os números de 2017 e 2018 ainda não estão disponíveis, mas farão esse índice superar os 600 mil.

São, em média, 37.229 assassinatos por armas ao ano — ou um a cada 14 minutos. Assim como acontece com o número total de homicídios, a curva das mortes causadas por armamentos é crescente há décadas. O ritmo de aumento, no entanto, tem um recorte definido. Entre 1996 (primeiro ano da série histórica do ministério) e 2003 (último ano antes de o Estatuto do Desarmamento entrar em vigor), a taxa média de subida foi de 6,7%. De 2004 a 2016, a curva desacelerou: a média do período foi de 1,7%. Em dezembro de 2017, o documentário “A Guerra do Brasil”, do GLOBO, mostrou que, de 2001 a 2015, o país registrou 786.870 homicídios, número maior que o de mortes das guerras do Iraque, Síria e dos atentados terroristas no período.

Nordeste puxa alta

Um estudo do sociólogo Júlio Jacobo, especialista em segurança pública, estima que, até 2014, a legislação que provocou a retirada de armas de circulação evitou 133.987 mortes. O presidente Jair Bolsonaro defende uma tese oposta: segundo ele, o aumento contínuo de homicídios é a prova de que a política desarmamentista fracassou. No Brasil todo, as mortes por armas de fogo cresceram 33% no século 21 (2001 a 2016). Há oito unidades da federação com estatísticas abaixo da nacional, das quais seis reduziram os casos nesse intervalo de tempo: São Paulo, Rio, Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Espírito Santo e Distrito Federal. Rondônia e Mato Grosso apresentaram crescimentos de 24% e 29%, respectivamente.

Na outra ponta, 19 estados tiveram um desempenho ainda mais preocupante que o do país como um todo. No Maranhão, as mortes por armas de fogo explodiram (681%). À exceção de Pernambuco, em todos os estados do Nordeste os assassinatos por armas, no mínimo, dobraram. Em Sergipe, 86% dos homicídios são cometidos com uso desse equipamento letal, enquanto em Alagoas o índice é de 85%.

O aumento da violência na região e no Norte do país impulsionou os dados nacionais. Em 2001, as mortes provocadas por armamentos nas duas regiões representavam 26% do total do país. Quinze anos depois, o peso no índice nacional passou a ser de 55%. A expansão de facções do crime organizado do Rio e de São Paulo e o fortalecimento de organizações criminosas locais —e as consequentes disputas por territórios — são apontadas como as principais razões para a explosão de violência no Norte e no Nordeste, cujo exemplo mais recente são os ataques no Ceará.

Por outro lado, em São Paulo, os assassinatos por armas de fogo caíram 74% no período — no Rio, a queda foi de 34%, apesar de um crescimento recente de 26% entre 2015 e 2016. O Sudeste concentrava 57% das mortes por armas de fogo no país em 2001 —hoje registra 24%. O decreto assinado por Bolsonaro na terça-feira tirou a obrigação de a Polícia Federal determinar se um cidadão tema“efetiva necessidade” de adquirir o direito à posse de arma, o que era criticado pelos defensores de uma legislação menos restritiva por dar um caráter subjetivo às autorizações.

O novo texto estabelece que a “efetiva necessidade” já está comprovada para os residente sem áreas rurais e centros urbanos com taxas de homicídios superiores a 10 por 100 mil habitantes — na prática, todos os cidadãos brasileiros acima de 25 anos e sem antecedentes criminais têm direito à posse, desde que sejam aprovados no teste psicológico e no curso de manuseio do armamento.

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, que participou da elaboração do decreto, defendeu a tese de que o crescimento contínuo dos homicídios indicava a necessidade de uma mudança na política para as armas de fogo. Ele se mostrou reticente, no entanto, quanto à flexibilização do porte — permissão para andar armado na rua —, item que o presidente já anunciou que pretende debater depois que voltar do Fórum Econômico Mundial, em Davos.

—Se apolítica de desarmamento fosse tão exitosa, o que seria esperado era que o Brasil não batesse, ano após ano, o recorde em número de homicídios — disse Moro, em entrevista à GloboNews.

Há evidências acadêmicas que apontam no sentido oposto. Na sexta-feira, O GLOBO mostrou que o aumento de crimes em decorrência da maior circulação de armas de fogo é praticamente consenso na comunidade científica.

Um estudo do economista Daniel Cerqueira, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostra que o crescimento de 1% de armas de fogo pode aumentar em até 2% a taxa de homicídios, além de não ter efeito sobre os crimes contra a propriedade. Outro argumento usado pelo governo é o de que os roubos a residências diminuiriam, pois os criminosos evitariam o risco de entrar em um imóvel, sabendo que poderia haver armamento no local —o decreto permite a posse de até quatro armas.

— As pesquisas apontam muito mais para um aumento da incidência criminal (com mais armas de fogo em circulação). Sobre a questão da legítima defesa, o que sabemos é que, quando existe uma disputa entre os criminosos e as vítimas, geralmente as vítimas levam desvantagem, inclusive com os bandidos se apossando das armas — avalia o sociólogo César Barreira, coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará.

Comércio ilegal

O sociólogo Ignácio Cano, do Laboratório de Análise de Violência da Uerj, acrescenta um outro ponto: o incremento do mercado ilegal de comércio de armas de fogo. — A facilitação do acesso vai fazer com que as armas fiquem mais baratas no mercado paralelo. Então não serão só os “cidadãos de bem” que vão conseguir armamento. Vai facilitar para todo mundo e aumentar a letalidade — aponta o sociólogo.

—Muitos policiais morrem quando estão de folga, reagindo a tentativas de assalto. Se eles, que são treinados, muitas vezes não conseguem sobreviver, imagina o cidadão comum.

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Nas montanhas, o clube classe A que serve café e tiro ao prato

Gustavo Schmitt

20/01/2019

 

 

Valor para entrar chega a R$ 65 mil e frequentadores vão de atletas a menores de idade que atiram com autorização

A lista de frequentadores do Clube de Caça e Tiro de São Paulo, em Santana do Parnaíba, resume bem o perfil multifacetado de quem se interessa pela prática hoje no país. Voltado à classe “A” —a joia para virar sócio chega a R$ 65 mil —, ali se reúnem curiosos, atletas e competidores, além de menores de idade que chegam com autorização judicial para atirar.

O novo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, frequenta o clube. A flexibilização da posse de armas, assinada na última semana pelo presidente Jair Bolsonaro, é muito bem vista no local, e a expectativa é de fomento aos negócios. Para atender à demanda, o local passa por reformas para oferecer a prática de tiro com calibres mais grossos, como rifles de precisão e um fuzil de caça .460, considerado o armamento civil mais potente. Diretor e tesoureiro do clube, Lamberto Ramenzoni, de 53 anos, prevê saltar dos atuais 140 associados para cerca de 300.

O GLOBO esteve no local dias antes de Bolsonaro assinar o decreto que flexibilizou a posse de armas. Não encontrou o ministro Salles, que depois afirmou ter ido ao clube seis ou sete vezes para a prática de tiro ao prato, embora nunca tenha se associado. Ele tem porte de uma pistola expedido pela Polícia Federal (PF), mas disse não ter planos para adquirir mais armas. A instituição é sediada numa área montanhosa da cidade, perto de condomínios de luxo. As paredes são ornamentadas com animais empalhados, como urso, búfalo, tigre e até um leão, a maioria deles trazida após a prática de caça na África, onde é permitida.

A bebida servida é geralmente café, já que é proibido ingerir álcool antes da prática. Também ali aproveita-se o espaço de uma charutaria montada exclusivamente para os sócios. A presença de menores de idade entre os atiradores chamou a atenção na visita. Um adolescente de 16 anos segue os passos de parentes, praticantes da modalidade, e começou a frequentar clubes de tiros aos sete anos, quando usava arma de chumbinho. Sete anos depois, participava de provas olímpicas com rifle calibre 12. Hoje tem no currículo um título de campeão brasileiro e outro sul- americano em provas com prato e hélice.

'Como um taco de golfe'

O adolescente tem autorização judicial para atirar com base no decreto 5.123/ 2004. O texto permite a prática de tiro desportivo por menores de 18 anos desde que autorizada pela Justiça e restrita a locais de tiros avalizados pelo Exército. A arma utilizada pode ser do clube ou do responsável pelo menor.

O gosto pelo tiro desportivo sempre foi um assunto delicado na vida do jovem. Aos oito anos ele provocou debate ao levar para a escola em que estudava um cartucho de bala vazio. —Minha família sempre me incentivou. Mas foi difícil porque o tiro é sempre visto como algo pejorativo e ruim. Nesse caso do cartucho, eu o levei porque considerava algo natural. Mas muitas mães fizeram reclamações e a situação ficou tensa. No final, meus pais acharam por bem me mudar de escola —contou o adolescente, por telefone, no dia seguinte à visita ao clube de tiros.

O jovem diz esperar que o decreto ajude a mudar a visão da sociedade sobre a prática de tiros. A opinião do jovem é partilhada por quem frequenta o clube. Favoráveis à posse e à promessa de Bolsonaro de liberação do porte de armas, associados, no entanto, defendem critérios rigorosos , além de punição “dura” em caso de desrespeito à legislação. Acreditam que a medida ajudará a inibir os bandidos, mas ponderam que não será a única solução para resolver os problemas de segurança pública.

—Tivemos 63 mil homicídios em 2017, a maioria, porém, com armas não registradas. O problema não são as armas. São as pessoas. Tenho um sítio em Limeira, onde toda vizinhança já foi assaltada. No meu nunca ninguém entrou porque sabem que tem guarda armada na porta —diz Lamberto José Ramenzoni, 92 anos, decano do grupo e pai do tesoureiro do clube.

O vice-presidente do clube, Juan Senra, faz coro:

—A Constituição diz que temos direito à legítima defesa. O cidadão de bem que está preparado e pode estar habilitado para ter arma (até a assinatura do decreto) não conseguia acesso. Especializado em modalidades esportivas, o clube tem competidores laureados no país e até um título mundial de tiro ao voo. Um dos mantras dos praticantes de tiro esportivo é o de que manusear uma arma é o mesmo “que um taco para um golfista ou uma raquete para um tenista”.

Com a consolidação de entidades e clubes de tiro desportivo, o número de pessoas com certificados de caçadores, atiradores e colecionadores oficialmente

registrados subiu de 670, em 2003, quando foi sancionado o Estatuto do Desarmamento, para 46.795 no ano passado. Esse certificado permite o porte de trânsito de casa até o clube.

No caso dos portes de armas concedidos pela PF, o número de autorizações chegou a 8.639 em 2018. É o maior patamar desde pelo menos 2014, quando 5.595 portes foram permitidos.