O globo, n. 31212, 19/01/2019. País, p. 11

 

Longe do poder, Temer vê série de traições políticas

Cleide Carvalho

19/01/2019

 

 

De volta a São Paulo, ex-presidente se dedica a filmes de guerra e, ao lado do filho de 9 anos, também assiste à produção sobre alianças e conspirações no Império Romano. Na nova fase, vida pública deve ficar em 2º plano

O ex-presidente Michel Temer está em fase de guerra. De volta a São Paulo há 20 dias, desde que deixou a Presidência, ele se ocupa com documentários sobre a guerra do Vietnã e a Segundo Guerra Mundial, mas foram episódios da série “Império Romano”, da Netflix, que renderam as primeiras lições de pai para filho sobre alianças e traições políticas.

Numa das tantas horas livres, com Michelzinho, de 9 anos, sentado ao seu lado, Temer discorria para o filho sobre o imperador romano Júlio César, que na hora da morte reconheceu seu filho adotivo Marcus Brutus entre seus algozes, e então teria proferido a célebre frase “Até tu, Brutus?”, quando foi interrompido por Michelzinho: “Essa frase eu já ouvi”, apressouse o pequeno.

Temer tem procurado dedicar mais tempo ao filho caçula, de sua união com Marcela Temer. Ainda assim, bate ponto todo dia no escritório que tem no Itaim, bairro de elite de São Paulo. É ali que recebe amigos e troca impressões ao telefone com antigos colegas de Brasília. Uma presença é constante: seu amigo e advogado Antônio Cláudio Mariz de Oliveira.

A pessoas próximas, Temer tem dito que entre suas metas agora está a retomada das atividades de seu escritório de advocacia. Quer deixar a política em segundo plano. Não pretende, por exemplo, voltar a ocupar a presidência do MDB, da qual está licenciado. Tampouco imagina voltar a ocupar algum cargo público. Temer diz que pretende se dedicar à advocacia em parceria com outros escritórios.

A rotina mais light também permitiu que ele voltasse a frequentar o grupo de advogados e amigos de mais de 30 anos que se reúnem todas as sextas-feiras para almoçar. Nesses encontros, não raras vezes a conversa chega na passagem de Temer pela Presidência e ele sempre acaba por relatar aos amigos a confiança de que o reconhecimento pelo trabalho feito no Planalto virá —o emedebista terminou seu mandato com a pior avaliação entre os que ocuparam o cargo desde 1989.

Selfies

Amigos relatam que ele é parado em restaurantes para pedidos de selfies. Foi assim na última segunda-feira no Cantaloup, casa de comida contemporânea próxima ao seu escritório. Ainda refletindo sobre seus pouco mais de dois anos e meio à frente do governo, Temer confidencia aos mais próximos que o principal problema de sua gestão foi a greve dos caminhoneiros, que paralisou serviços no país por dez dias no ano passado. E avalia ter acertado nas duas intervenções estaduais, no Rio e em Roraima. O tom de Temer é sempre o mesmo: ele verbaliza a amigos que sente ter cumprido a tarefa que lhe cabia, ainda que em clima de Fla-Flu e a despeito dos constantes ataques e memes na internet. Fora filmes, séries e exercícios na esteira de casa, Temer também tem aproveitado para colocar a leitura em dia.

Devorou a trilogia de Mia Couto sobre a história de Moçambique, passou pelos amores da monarca Catarina, a Grande, com o chefe militar Potemkin e se debruçou sobre a vida do político populista Adhemar de Barros, o inspirador do lema “rouba, mas faz”, que participou do golpe de 1964, acabou escanteado e morreu exilado em Paris.

A vida discreta, contudo, não o afastou totalmente das discussões políticas. Três vezes presidente da Câmara dos Deputados e, desde 1985, integrante da cúpula do PMDB (hoje MDB), o ex-presidente mantém regulares conversas com o ex-presidente José Sarney, o deputado tucano Antônio Imbassahy, seu ex-secretário de governo, e Aguinaldo Ribeiro (PP), que foi líder do governo na Câmara. Sem falar no ex-ministro Delfim Netto, que ouve e é ouvido há pelo menos cinco décadas.

Denúncias

Três vezes denunciado durante o mandato por crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, alvo de um inquérito em andamento e com outros cinco pedidos de abertura de investigações feitos pela PGR, Temer tem discutido com Mariz a viabilidade de contratar outros escritórios.

Amigos dizem esperar que, fora da Presidência, as acusações contra Temer percam o caráter político e se transformem exclusivamente em problemas jurídicos. Em dezembro passado, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, denunciou Temer ao Supremo Tribunal Federal (STF) por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no inquérito dos portos. A denúncia foi feita 12 dias antes do encerramento do mandato.

Ele é acusado de favorecer empresas do setor portuário durante o exercício da Presidência. Duas denúncias que haviam sido barradas pela Câmara dos Deputados (uma denúncia contra presidente só pode virar processo com autorização do Legislativo) podem agora ser encaminhadas a outras instâncias da Justiça, já que ele perdeu o foro privilegiado. As remessas para a primeira instância não são automáticas. Todas precisarão ser decididas pelo Supremo Tribunal Federal.

Numa delas, o ex-presidente foi denunciado por crimes de organização criminosa e obstrução de Justiça, acusado de receber, ao lado de outros políticos do PMDB, como o ex-deputado Eduardo Cunha, mais de R$ 587 milhões em propina. A segunda está vinculada a delações de executivos do Grupo J&F. Em março de 2017, o ex-assessor do presidente e ex-deputado Rodrigo Rocha Loures (MDB-PR) foi filmado saindo de um restaurante com uma mala com R$ 500 mil. Na época, o procurador Rodrigo Janot sustentou que parte do dinheiro era propina e destinava-se a Temer. O ex-presidente sempre negou todas as acusações contra ele.