Correio braziliense, n. 20291, 10/12/2018. Brasil, p. 5

 

Seis meses de apuração

Alan Rios

10/12/2018

 

 

SOCIEDADE » Polícia Civil de Goiás investiga, desde junho, denúncias contra o médium João de Deus por abuso sexual. Dezenas de mulheres deram depoimentos à imprensa no fim de semana sobre a conduta do religioso. MP deve criar uma força-tarefa

Abadiânia (GO) e Brasília — O serviço de Inteligência da Polícia Civil de Goiás investiga, desde junho, denúncias de abusos sexuais que teriam sido praticados pelo médium João Teixeira de Faria, conhecido como João de Deus. À época, o Ministério Público do Estado havia encaminhado um ofício pedindo que o delegado-geral da Polícia Civil, André Fernandes, apurasse a conduta do religioso. O trabalho dos agentes tramita em sigilo para preservar as vítimas. No entanto, com a repercussão do caso, mais mulheres quebraram o silêncio.

Dezenas de vítimas deram depoimentos à imprensa sobre abusos praticados por João de Deus, que nega as acusações. O Correio localizou duas mulheres. Uma delas mora no Noroeste. Ela contou que o assédio ocorreu em 2006, quando buscava uma cura para a mãe. Já uma moradora de Valparaíso (GO), cerca de 37km de Brasília, disse ter sido molestada durante um tratamento contra a depressão, em 1999. Hoje, elas garantem que vão procurar a polícia e o Ministério Público para formalizar as denúncias (leia depoimentos ao lado). Os promotores de Justiça de Goiás devem montar uma força-tarefa e pedem que as vítimas procurem a polícia. Eles darão hoje uma entrevista coletiva.

O delegado-geral da Polícia Civil de Goiás, André Fernandes Almeida, pediu que as apurações não se atenham somente aos abusos sexuais, mas também ao exercício ilegal da medicina e estelionato — casos denunciados desde os anos 1970 e arquivados pelo regime militar. A principal missão dos investigadores será reunir depoimentos de outras possíveis vítimas.

Mesmo que as investigações tenham começado em junho, a apuração efetiva deslanchou em outubro, após a Delegacia Estadual de Investigações Criminais (Deic) receber denúncias de mulheres que alegam terem sido abusadas. “Recebemos esse relato e instauramos o inquérito, com toda atenção, devido à complexidade do caso. As mulheres serão ouvidas pela Polícia Civil para que possamos buscar as provas necessárias para investigar com imparcialidade e com eficiência”, destaca o delegado.

O modo de atendimento denunciado pelas mulheres — encontros sozinhas com o médium após consultas espirituais — é condenado pela Federação Espírita Brasileira (FEB). A organização recomenda que o serviço não deva ocorrer isoladamente. “Não (se) recomenda a atividade de médiuns que atuem em trabalho individual, por conta própria. Eles não estão vinculados ao movimento espírita nem seguindo sua orientação”, criticou, em nota.

 

Defesa

A doutrinadora espírita Maria de Fátima Nunes Eymard conhece João de Deus desde a infância. A religiosa sai em defesa do médium. “Professamos a mesma fé, sempre foi muito limpo, correto, caridoso e moralmente rico. Muito estranha e assustadora essa conversa. O João nunca fica sozinho, tem sempre uma assistência e uma corrente mediúnica com ele”, afirma.

A assessoria de imprensa de João de Deus classificou as denúncias como “falsas e fantasiosas. “A sala em questão é pública, qualquer um tem acesso a ela e jamais fica trancada. É lamentável, uma vez que o médium João é uma pessoa de índole ilibada”. Ele já foi acusado de outros crimes sexuais, como sedução de menor e atentado ao pudor. Em nenhum dos casos, foi considerado culpado.

O médium é um dos mais famosos do país e realiza, desde 1976, atendimentos e “cirurgias espirituais”. A fama conquistou a atenção de personalidades brasileiras e internacionais. A apresentadora Xuxa Meneghel, a modelo Naomi Campbell, a apresentadora Oprah Winfrey, o ex-jogador de futebol Ronaldo Fenômeno e os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff já foram atendidos por ele.

 

Depoimentos

“Pior dia da minha vida”

“O abuso aconteceu quando eu buscava uma cura para minha mãe, que sofria de um câncer. Foi o pior dia da minha vida. Ele fez orações. Depois, pediu para que todos saíssem, inclusive minha mãe, e que eu ficasse a sós com ele. Fiquei na maior inocência. Então, ele ficou de pé, pediu para que eu fosse para a frente dele e que desabotoasse a minha calça. Eu questionei muito, resisti, mas ele falou que aquilo tinha que ser feito comigo porque, por meio de mim, minha mãe receberia aquela energia. Foi horrível. Ele tentava pegar nas minhas partes íntimas e se esfregava atrás de mim. Enquanto ele não ejaculou na minha calça, não parou. Ele ejaculou em mim e disse que não tinha sido ele, mas uma entidade. Toda vez que eu me lembro, é uma tortura. Mas acho que, daqui para frente, será mais fácil lidar com isso.”

Moradora do Noroeste, 49 anos, molestada em 2006

 

“Pôs minha mão dentro da calça dele”

“Quando saímos do salão de orações coletivas, onde recebemos passes, ele já estava na sala reservada. Um dos ajudantes permitiu que eu ficasse sozinha com ele. Eu ia sentar no sofá, mas ele não deixou. Pediu para que eu ficasse de pé. Ele começou a me apalpar, tremendo e gemendo. Dizia no meu ouvido que era oração. Ele pegou minha mão e a colocou dentro da calça dele. Eu fechei a mão. E ele dizia para eu abrir a mão. Ele reclamou: ‘Filha, você não quer ficar curada?’. E pedia para eu segurar (o pênis dele). Fiquei num estado catatônico. Fui surpreendida com essa situação asquerosa. Eu só queria me livrar daquilo. Ele colocou as duas mãos no meu ombro e pediu que eu me abaixasse para fazer sexo oral, mas não fiz. Afastei-o e disse que não queria mais.”

Moradora de Valparaíso, 41 anos, molestada em 1999