O globo, n. 31250, 27/02/2019. País, p. 6

 

'Esse apego ao dinheiro... é um vício'

Juliana Castro

27/02/2019

 

 

Cabral detalha propinas e pagamentos a aliados, na 1ª confissão à Justiça Federal

No primeiro depoimento ao juiz Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal Criminal, em que admite o recebimento de propina, o exgovernador Sérgio Cabral (MDB) enumerou uma série de pagamentos ilícitos relacionados ao esquema de corrupção no estado e afirmou que seu “erro de postura” foi se apegar ao poder e ao dinheiro. O exgovernador admitiu ainda que eram seus os US$ 100 milhões que estavam em contas no exterior, e que foram entregues à Justiça pelos doleiros delatores Marcelo e Renato Chebar.

Cabral falou sobre seu “apego” ao explicar como arquitetou, junto com o ex-secretário de Saúde Sérgio Côrtes, o desvio de dinheiro da pasta, com o envolvimento do empresário Arthur Soares, conhecido como Rei Arthur.

— Pagava-se propina, isso me dito pelo Arthur, em governos anteriores. E aí falei com o Sérgio Côrtes (ex-secretário de Saúde): vou ficar com 3% e você fica com 2% (da propina). Esse meu erro de postura, de apego a dinheiro, a poder, a tudo isso. Isso é um vício. E o Côrtes se sentiu muito à vontade para me introduzir o Miguel Iskin —afirmou Cabral.

Miguel Iskin é um empresário, também alvo da LavaJato e amigo de Côrtes, que também pagou propina a Cabral e ao ex-secretário, segundo o ex-governador. O emedebista afirmou que os pagamentos feitos por Iskin seguiam a mesma divisão dos de Rei Arthur, mas, depois, passou o rateio a ser meio a meio.

A audiência de ontem era relativa ao recebimento de vantagens indevidas de R$ 16 milhões na área da Saúde, pagos por Iskin. O emedebista diz que deve ter recebido de 30% a 40% desse valor. De Arthur Soares, Cabral disse que recebeu R$ 6 milhões para sua campanha de 2006, R$ 3 milhões para a campanha do ex-prefeito Eduardo Paes, ambas as contribuições por meio de caixa dois, e R$ 30 milhões em propina.

Cabral afirmou ainda que chegou a combinar versões com Côrtes, Iskin e seu sócio, Gustavo Estelita, na cadeia para serem ditas em depoimentos. Sobre o depoimento de Cabral, a defesa de Côrtes afirmou que fatos citados ontem não são novos e o próprio ex-secretário já tinha assumido alguns deles. Em nota, Iskin disse que “o desespero leva pessoas a inventar fatos”. Arthur Soares está foragido.

Campanha de Pezão

Cabral disse também que a campanha do ex-governador Luiz Fernando Pezão em 2014 custou R$ 400 milhões. Oficialmente, a despesa declarada à Justiça Eleitoral foi de R$ 45 milhões. Cabral disse ainda que o apoio do Solidariedade à campanha de Pezão foi comprado. Cabral afirmou também que Pezão recebeu propina no valor de R$ 150 mil mensais. A defesa de Pezão não retornou ao contato.

— Ele recebia como vice e secretário de Obras e o Hudson Braga era o braço operacional dele — disse Cabral, confirmando a existência na secretaria de Obras da chamada taxa de oxigênio, o equivalente a 1% de propina nos contratos.

O ex-governador afirmou ainda que a campanha de Eduardo Paes à prefeitura do Rio em 2008 recebeu recursos de caixa dois:

— Em 2008, o Iskin deu R$ 1 milhão para a campanha dele (Paes). O Arthur Soares, que havia sido o maior contribuinte da minha campanha em 2006 com R$ 5 ou R$ 6 milhões, deu para a campanha do Paes de R$ 3 a R$ 4 milhões.

Embora tenha reconhecido à Justiça o recebimento de propina pela primeira vez, ele fez o mesmo, perante o Ministério Público Federal, no dia 21 de fevereiro. Na ocasião, ele disse que recebeu US$ 16 milhões de Eike Batista para campanhas eleitorais.

Em nota, Paes disse que todos os valores recebidos durante a campanha foram devidamente declarados e aprovados pela Justiça. O ex-prefeito ressalta ainda que Cabral afirmou que ele nunca recebeu propina.

No depoimento, Cabral falou sobre a situação das Organizações Sociais (OSs) que administram hospitais e afirmou que uma delas tinha um esquema de recursos que envolvia religiosos:

— Não tenho dúvida que deve ter havido esquema de propina com a OS da Igreja Católica, a Pró-saúde. Não tenho dúvida. O Dom Orani devia ter interesse nisso, com todo respeito ao Dom Orani, mas ele tinha interesse nisso (...). Essa PróSaúde certamente tinha esquema de recurso que envolvia inclusive religiosos.

Procurada, a Arquidiocese afirmou que “a Igreja Católica no Rio e seu arcebispo têm o único interesse que organizações sociais cumpram seus objetivos, na forma da lei, em vista do bem comum”. A PróSaúde afirmou que tem colaborado com as investigações e, em virtude do sigilo do processo, não se manifestará.

Opinião do GLOBO

Dúvidas

HOUVE TENTATIVAS do ex-governador Sérgio Cabral de fazer delação premiada, mas já se sabia tanto sobre as suas traficâncias no mundo da corrupção, relatadas por testemunhas, que não justificava o MP fechar algum acordo com ele. AGORA, CABRAL resolve abrir arquivos. É sempre bom ter mais detalhes sobre o saque patrocinado no estado por um grupo que tinha o próprio governador na chefia. É uma tentativa de reduzir suas elevadas sentenças.

HÁ DÚVIDAS se a estratégia surtirá efeito.

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Dependência ou pragmatismo? Psicanalistas respondem

Leticia Lopes

27/02/2019

 

 

Vício em dinheiro tem difícil diagnóstico e pode se confundir com a tentativa de vitimização

Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ), o psicanalista Jeremias Ferraz Lima diz que, em mais de quarenta anos de profissão, nunca atendeu nenhum paciente com vício em dinheiro. Apenas pessoas que se sentiam culpadas por circularem em “ambientes corruptos”.

—O diagnóstico de um distúrbio como esse é muito complicado, já que são sintomas egossintônicos, que agradam ao ego. Você fica viciado em ganhar dinheiro, isso traz prazer e bem-estar, e está diretamente ligado a autoestima. Obviamente, a pessoa não encara isso como um problema. Com o Cabral, passou a ser um porque ele está preso —explica Lima, que também é professor adjunto da UFRJ e autor do livro Psicanálise do Dinheiro.

Lima acredita, porém, que há sinais de que o exgovernador do Rio pode ter, de fato, um vício em poder e dinheiro. Cabral, por outro lado, pode, na verdade, “mirar indulgência processual”.

Para Virgínia Ferreira, professora da Faculdade de Medicina de Petrópolis, as declarações de Sérgio Cabral não fazem sentido. Ela entende que as atitudes do ex-governador se explicam pela “ganância desmedida”.

—Não existe nenhum vício, está muito longe disso. O que há, na realidade, é um desvio de caráter. É bom que se entenda que o vício só traz malefícios. A pessoa sabe que ela está errada, mas não tem controle. O dele é justo o oposto. O que ele tem é uma ganância desmedida. Agora, tenta se vitimizar e certamente minimizar as punições na Justiça —avalia.

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Irmão de ex-secretário é alvo de busca e apreensão

27/02/2019

 

 

Investigadores suspeitam que José Antonio Fichtner atuou para lavar dinheiro do esquema

A Polícia Federal fez ontem busca e apreensão na casa e no escritório de advocacia de José Antonio Fichtner, irmão de Régis Fichtner, exsecretário da Casa Civil no governo de Sérgio Cabral. Também é alvo de busca e apreensão Fábio França, filho do coronel Fernando França, apontado como braço direito de Fichtner. Fernando e o ex-secretário foram presos no último dia 15.

No pedido que embasa a ação de busca e apreensão, o Ministério Público Federal indica que há “indícios de que José Antonio Fichtner realiza operações de lavagem de dinheiro obtido criminosamente para seu irmão, de modo a ocultar e blindar o patrimônio para este”. As suspeitas recaem sobre a compra e a operação de uma fazenda na Bahia, adquirida por R$ 4 milhões, valor dividido igualmente pelos irmãos, em 2009. José Antonio não teria declarado a compra à Receita Federal. Os investigadores suspeitam ainda que o escritório de advocacia da família teria sido utilizado para lavagem de dinheiro.

Segundo o MPF, Sérgio Cabral teria confirmado a atuação do irmão de Régis no esquema. Anteontem, Cabral disse que o ex-secretário sempre teve conhecimento e participação nos valores recebidos.

“Tudo comandado pelo Régis. Eu dava na mão dele. Dizia: eu quero assim, faz assim, ele ia fazendo, coordenando e tirando os próprios proveitos dele. Eu tirava os meus proveitos dos meus combinados, eu quero x% da obra, 2%, 3% da obra, e o Régis fazia um acordo, se beneficiava também dessa caixa".

Ao G1, a defesa de Régis Fichtner declarou que só vai se manifestar quando tiver acesso ao conteúdo do depoimento de Sérgio Cabral.