O globo, n. 31249, 26/02/2019. Sociedade, p. 26

 

Na ONU, Damares manda recado contra o aborto

Valéria Maniero

26/02/2019

 

 

Em sua estreia na Comissão de Direitos Humanos, na Suíça, ministra defende o direito à vida ‘desde a concepção’ e decepciona ativistas ao não lembrar a morte de Marielle Franco, prestes a completar um ano

Em seu primeiro discurso na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra, na Suíça, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, defendeu o direito à vida “desde a concepção”, numa mensagem contra o aborto, e afirmou que um dos focos de sua atuação será o “fortalecimento de vínculos familiares”.

Para decepção de ativistas pelos direitos humanos, Damares não fez nenhuma menção à morte da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL), prestes a completar um ano. Afirmou, apenas, que o país segue comprometido com a proteção “dos corajosos defensores de direitos humanos”.

Mais tarde, questionada sobre o motivo de não ter lembrado Marielle, a ministra disse que “temos outros casos no Brasil”.

—Por que citar tão somente Marielle? A gente poderia fazer uma lista. E a gente entende que este não era um ambiente de prestação de contas do caso Marielle — afirmou Damares, referindose à Comissão de Direitos Humanos da ONU, onde discursou. — O recado que a gente queria mandar é que os defensores dos direitos humanos estão sendo protegidos no Brasil.

A coordenadora de programas da ONG Conectas, Camila Asano, disse que é preciso que haja investimento de fato no programa de proteção de defensores de direitos humanos:

— A ministra fez anúncios sobre fortalecer a estrutura que temos de proteção aos defensores, mas não mencionou o assassinato da Marielle. Essa omissão fica ainda mais grave por causa da proximidade de um ano da morte dela.

No discurso, a ministra procurou assegurar que se comprometerá com a “defesa da democracia” e a luta contra o feminicídio e o abuso sexual.

— Defenderemos tenazmente o pleno exercício por todos do direito à vida desde a concepção e à segurança da pessoa, em linha com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, bem como, no âmbito regional, com o Pacto de São Jose da Costa Rica.

'Na barriga da mamãe'

Para Sonia Corrêa, codiretora do Observatório de Sexualidade e Política, a afirmação de Damares de que o direito à vida deve ser defendido desde a concepção não tem amparo legal na Constituição nem no Pacto de São Jose da Costa Rica.

—Os dois instrumentos que a ministra cita não têm sido interpretados dessa maneira. As instâncias responsáveis pela interpretação desses sistemas jurídicos compreenderam recentemente esses textos de uma maneira que não atribui o valor absoluto do direito à vida desde a concepção.

Já Asano diz que a declaração sobre o direito à vida reflete uma indisposição em dialogar com a demanda do movimento de mulheres:

— No momento em que ela finca que o direito à vida é desde a concepção, reforça a criminalização das mulheres que realizam aborto.

Depois do discurso, sob críticas de ativistas pró-direito ao aborto, Damares disse a jornalistas que “eles não entenderam”:

— O Brasil quer proteger todas as vidas, inclusive na barriga da mamãe. É o objetivo desse governo.

Ainda em seu discurso, Damares citou a tragédia de Brumadinho (MG), onde uma barragem da Vale se rompeu e despejou toneladas de rejeitos na cidade. A ministra avaliou que “a ação ou omissão de empresas pode ter consequências concretas sobre os direitos humanos”. E clamou para que outros países se unam ao Brasil na ajuda à Venezuela e para que reconheçam Juan Guaidó como presidente encarregado do país.

— O Brasil uniu-se aos esforços do presidente encarregado Juan Guaidó, não para intervir, mas para prover imediata ajuda humanitária ao povo venezuelano. O Brasil apela à comunidade internacional a somar-se ao esforço de libertação da Venezuela, reconhecendo o governo legítimo de Guaidó e exigindo o fim da violência das forças do regime contra sua própria população.

Para o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB nacional, Everaldo Patriota, o primeiro discurso de Damares na ONU não corresponde à realidade do país.

— O discurso da ministra é para inglês ver. As atitudes do governo não refletem o que ela diz lá fora. Se o governo estivesse fazendo o que foi dito no discurso, estaríamos aplaudindo. Infelizmente, essa não é a prática.

Patriota afirmou também que grande parte do discurso da ministra apenas reafirmou obrigações que o país já tem frente à comunidade internacional, porque é signatário de tratados como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, ambos citados por Damares.

“Por que citar tão somente Marielle? A gente poderia fazer uma lista. E a gente entende que este não era um ambiente de prestação de contas do caso Marielle”

Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em referência à Comissão de Direitos Humanos da ONU, onde discursou