O globo, n. 31248, 25/02/2019. País, p. 7
Em Brumadinho, o arriscado ofício dos bombeiros
Ana Lucia Azevedo
25/02/2019
Um mês após a tragédia, eles precisam rastejar na lama em busca de corpos e enfrentar riscos como caminhar por montes instáveis de rejeito: ‘Ninguém está trabalhando em lugar seguro’, diz comandante da operação
“Tenham um dia seguro”. Com essa mensagem à tropa, o comandante das operações de resgate das vítimas da barragem da Vale em Córrego do Feijão, tenentecoronel Anderson Passos, dos bombeiros de Minas Gerais, dá início a mais um dia de trabalho em busca dos desaparecidos na tragédia que hoje completa um mês. Na sextafeira ainda eram 133. E há 177 mortos identificados.
Tem sido assim desde as primeiras horas após o 25 de janeiro. No início, os bombeiros buscavam sobreviventes. Agora, arriscam a própria vida para dar às famílias das vítimas o direito de se despedirem de quem amavam e um túmulo digno.
O trabalho começa com o raiar do dia e termina quando chega a noite. Os bombeiros sabem que têm pela frente uma zona de destruição jamais vista, de morte por politraumatismo em massa.
Há corpos presos em estruturas destroçadas. Há aqueles lançados às margens do rio. Outros afogados no fundo de bacias de areia movediça. E ainda os esmagados sob pilhas de minério.
Os bombeiros rastejam em lodaçais, afundam o corpo em lama, sobem e descem por montes de rejeito que cedem sob os pés e ocultam vergalhões e galhos. Um mês depois ainda há riscos de explosões de gás e nova movimentação do rejeito.
—Sabemos que ninguém aqui está trabalhando em lugar seguro —disse o coronel Passos a seus comandados na última terça. — Mas mantemos o monitoramento da área —acrescentou aos bombeiros, que se despediram com uma saudação coletiva e partiram em equipes.
Em campo, dentro da Mina de Córrego do Feijão, o tenente Igor Redua, que chefia uma equipe, diz que ele e seus companheiros têm sido castigados por chuva, calor, mosquitos e pelo odor de decomposição —na sexta-feira foram atacados por abelhas. Usam uma roupa de neoprene grossa para se proteger da água suja e viscosa.
—Somos militares, fomos treinados, mas sim, é desgastante —afirma o tenente, que já resgatou três corpos e dois segmentos (partes significativas de corpos).
Do alto de uma pilha de rejeito, o sargento Leite fita o que restou da barragem e afirma que segue motivado a encontrar desaparecidos, dar um pouco de paz às famílias.
—Mas vejo essa destruição e é impossível não ficar triste —diz ele, que tem um filho de 4 meses e uma mulher aflita em casa toda vez que ouve notícias da barragem.
Leite e os colegas vasculham o rejeito na mina, escoram-se em bastões improvisados para tentar identificar vestígios humanos em meio a um caos em tons de ocre.
Os corpos, de forma geral, foram levados a uma curta distância, que não costuma passar de dois quilômetros e meio, diz o coronel Passos:
—Mas há aqueles de que não sabemos. Gente que passava na estrada e a lama arrastou. Não será surpresa se acharmos um a cem quilômetros, levado pelo rio. E alguns talvez fiquem para trás.
Para sempre. Num canto de mata, num fundo de mina, na margem do rio, onde nem o dedicado trabalho dos bombeiros for capaz de alcançar.
Órfãos da tragédia
No povoado de Córrego do Feijão, as famílias, incluindo muitas crianças, esperam. Não existem informações oficiais sobre o número de crianças órfãs devido ao rompimento da barragem: o não oficial oscila de 119 a 149.
Fato é que as crianças aprenderam a observar a direção dos helicópteros. Se seguissem para Belo Horizonte, era indício de alguém vivo, indo ao hospital. Se o destino fosse a base no povoado, era sinal que o resgate tinha sido de um corpo. Passado um mês do desastre, as crianças já não veem mais esperança no céu.