O globo, n. 31247, 24/02/2019. País, p. 8
Investigações não precedem prisões por tráfico
Cleide de Carvalho
24/02/2019
Estudo revela que, entre 2013 e 2015, apenas 11,25% das condenações ocorreram como parte de ações de inteligência, contra quase 90% de detenções em flagrante, que têm pouco efeito sobre atuação do crime organizado
Em setembro de 2014, Ricardo Batista Alves dirigia um Gol pela BR-163, na divisa entre Mato Grosso do Sul e Paraná, quando policiais rodoviários fizeram sinal para que parasse. O rapaz, então com 26 anos, levava no carro 492 quilos de maconha. Preso em flagrante, foi condenado a seis anos e meio de prisão por transporte de drogas. Em fevereiro de 2017, já cumprindo pena em regime semiaberto, fugiu. Embora estivesse levando uma quantidade significativa de droga, Alves virou réu sozinho.
A apreensão não foi capaz de permitir que os investigadores chegassem aos traficantes mais graúdos. Foragido, Alves é um dos condenados em 800 sentenças por tráfico de drogas proferidas pela Justiça de oito estados, entre julho de 2013 e junho de 2015, analisadas pelo juiz Marcelo Semer, do Tribunal de Justiça de São Paulo. Semer fez a análise como parte de sua tese de doutorado em Direito Penal e Criminologia na Universidade de São Paulo (USP). A pesquisa revela que apenas 11,25% das condenações foram precedidas de investigações policiais. Nada menos doque 88,7% das prisões ocorreram após flagrantes nas ruas.
— A investigação é irrisória, existe de forma tênue. Em geral, o trabalho é dirigido ao pequeno traficante, ao microtráfico. Pouco se avança para estabelecera participação dos presos em quadrilhas ou organizações criminosas —diz Semer. De acordo co matese, as condenações por tráfico estão longe de atrapalhar o crime organizado. Mais de 70% dos processos se referem a apenas um réu. Em somente 21,88% dos processos houve denúncia por associação criminosa. E apenas 12% envolveram apreensão de arma ou munição.
Mesmo quando há denúncia por associação criminosa, a falta de provas acaba não levando à condenação na Justiça. Alves, por exemplo, chegou a ser denunciado por associação criminosa por levar grande quantidade de maconha, masa Justiça não aceitou, por falta de provas. O único relato contra ele foi o dos policiais rodoviários que fizeram o flagrante na estrada.
Dos 1.213 sentenciados na análise de Semer, 69,58% eram réus primários. Os reincidentes somavam apenas 17,64% — em 12,78% das sentenças não havia essa informação.
Semer explica que, sem investigação, a condenação geralmente é feita com base nas informações dos policiais que fizeram o flagrante. Muitas vezes os agentes relatam, como testemunhas, que o próprio detido levou a algum local onde havia alguma droga guardada.
—O foco das polícias é muito malfeito, com prisões sem investigação, que dificilmente alcançam o alto escalão do crime organizado. Mesmo quando se apreende grandes carregamentos, pegam apenas o courrier (intermediário). O que temos hoje é muita prisão por nada —afirma Bruno Langeani, do Instituto Sou da Paz. Pesquisas feitas no Rio e São Paulo, pelo Instituto de Segurança Pública do Rio e pelo Instituto Sou da Paz, entre 2016 e 2017, mostraram que um terço dos detidos pela polícia era apenas usuários de drogas, não traficantes.
Nos processos analisados por Semer, a maioria envolveu pequena quantidade de droga. Em 58% das apreensões de maconha, o volume não ultrapassou 100 gramas; apenas 16,93% das porções eram superiores a um quilo. No caso da cocaína em pó, 56,14% das apreensões foram inferiores a 50 gramas; apenas 15,22% registraram quantias superiores a 500 gramas. Nas apreensões de crack, 75,69% foram inferiores a 50 gramas e apenas 6,37% superiores a meio quilo.
Sem efeito na distribuição
Langeani diz que as ações da polícia não atrapalham sequer o fornecimento de drogas nas biqueiras, como são conhecidos os pontos de venda de drogas, já que a polícia prende uma pessoa de manhã e à tarde já tem outra no lugar.