Correio braziliense, n. 20336, 24/01/2019. Mundo, p. 14

 

O cerco se fecha

Rodrigo Craveiro 

24/01/2018

 

 

De um lado, o presidente Nicolás Maduro, entrincheirado no Palácio de Miraflores, em Caracas, cercado de simpatizantes e aferrado ao poder. Do outro, o deputado Juan Guaidó, o líder da Assembleia Nacional que se autoproclamou ontem presidente e foi reconhecido por vários países, incluindo o Brasil (leia mais na página 15). A Venezuela entrou na madrugada mergulhada em tensão, com dois chefes de Estado, dois parlamentos e dois Supremos Tribunais de Justiça.

Diante de dezenas de milhares de pessoas reunidas na Praça João Paulo II, em Chacao, região metropolitana a leste da capital, Guaidó prestou juramento como líder interino da nação. “Hoje, 23 de janeiro de 2019, em minha condição de presidente da Assembleia Nacional, ante Deus e à Venezuela, juro assumir formalmente as competências do Executivo nacional como presidente encarregado da Venezuela”, declarou. “Irmãos e irmãs: hoje dou o passo com vocês, entendendo que estamos em ditadura.” Os militares venezuelanos ignoraram Guaidó e respaldaram a lealdade ao regime. Quase imediatamente, a Casa Branca o reconheceu como mandatário, e o governo de Donald Trump avisou que, caso Maduro use a força, “todas as opções estarão sobre a mesa”. O Departamento de Estado americano o instou a renunciar.

A retaliação não tardou. Da varanda do Palácio de Miraflores, diante de uma imensa bandeira da Venezuela e vestido de vermelho, Maduro discursou aos gritos, ofegante e nervoso. Anunciou a ruptura de relações diplomáticas com os Estados Unidos e deu prazo de 72 horas para a saída dos funcionários de Washington. Também acusou a Casa Branca de arquitetar um golpe de Estado para promover um “governo títere” e de dividir a Venezuela. “Aqui, há dignidade, carajo!”, afirmou. “Aqui, vamos à guerra. Vamos ao combate e à vitória da paz e da democracia”, acrescentou, ao exortar a população à “máxima mobilização e combatividade”. “A Venezuela se respeita. Nem golpismo, nem intervencionismo”, alertou, após citar o golpe que derrubou João Goulart em 1964 e impôs uma ditadura de 21 anos no Brasil.

Por meio de comunicado no Twitter, as Forças Armadas Nacionais Bolivarianas (FANB) afirmaram estar “unidas ao povo venezuelano”. “Somos respeitosos da Constituição e das leis. A Venezuela elegeu um presidente, somos soberanos e leais ao nosso comandante em chefe Nicolás Maduro Moros. Traidores, não sigam, desde o exterior, desrespeitando a Pátria. Lutaremos e venceremos!”, diz a nota. O ministro da Defesa, Vladimir Padrino López, advertiu que não aceitará “um presidente imposto”. Foram  respostas da caserna aos apelos da oposição para que os militares não reprimissem os protestos.

 

Repressão

Dois dias antes, 27 militares da Guarda Nacional Bolivarianas (GNB) tinham sido detidos depois de se insurgirem em Cotiza, no norte de Caracas. Na madrugada, manifestantes atearam fogo a uma estátua do falecido presidente Hugo Chávez, em San Félix, no estado de Bolívar. Seis pessoas morreram em protestos e saques em Caracas e em Bolívar. No decorrer do dia, a tropa de choque enfrentou opositores no leste da capital usando tanquetas, balas de borracha e gás lacrimogêneo.

A escolha da data por Guaidó para se autoproclamar presidente interino não foi por acaso. Em 23 de janeiro de 1958, um golpe de Estado pôs fim à ditadura do general Marcos Pérez Jiménez, forçado a fugir para a República Dominicana. A opositora Mesa de Unidade Democrática (MUD), até então fragmentada,  ganhou fôlego com os protestos convocados para ontem, que mobilizaram centenas de milhares de pessoas em Caracas, no interior e em várias nações. Enquanto a multidão marchava pelas ruas, o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) ordenou ao Ministério Público uma investigação criminal dos membros da Assembleia Nacional, acusados de usurpar as funções de Maduro.

Um dos principais nomes da oposição no exílio, o ex-prefeito de Caracas e preso político Antonio Ledezma disse ao Correio que Maduro “vive os estertores de uma tirania moribunda”. “Ele seguirá com suas ameaças. O juramento de Guaidó é consequência natural do processo de transição política que vinha se consolidando. Não há qualquer surpresa no cenário político da Venezuela, exceto o fato de que Guaidó deu um passo histórico, abraçado e sustentado pelo próprio povo”, comentou.

Williams D’Ávila, deputado da Assembleia Nacional e presidente da Comissão de Assuntos Internacionais do Parlamento do Mercosul (Parlasur), assegurou à reportagem que Guaidó é “o presidente legítimo juramentado pelo povo em toda a Venezuela”. “Os militares devem obediência à Constituição e a Venezuela tem de jurar lealdade a Guaidó”, lembrou.

 

Frases

*Hoje, 23 de janeiro de 2019, em minha condição de presidente da Assembleia Nacional, ante Deus e à Venezuela, juro assumir formalmente as competências do Executivo nacional como presidente encarregado da Venezuela”

Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional, durante comício ontem em Caracas

“Como presidente constitucional, chefe de Estado, em cumprimento de minhas funções, que jurei frente ao povo de respeitar e fazer respeitar a independência, a soberania e a paz; decidi romper relações diplomáticas e políticas com o governo imperialista dos Estados Unidos”

Nicolás Maduro, presidente da Venezuela, ao exibir o documento sobre a ruptura de relações