O globo, n. 31242, 19/02/2019. Artigos, p. 3

 

Tipificação criminal da homofobia é urgente

Carlos Roberto Siqueira Castro

19/02/2019

 

 

O Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento da ADO (ação direta de inconstitucionalidade por omissão) nº 26, de relatoria do ministro Celso de Mello, que pede o reconhecimento da omissão do Congresso Nacional de legislar sobre a criminalização da homofobia e transfobia, e considere crime de racismo os atos de violência e discriminação contra homossexuais e transexuais até o Legislativo deliberar o tema.

Talvez não exista questão mais urgente a exigir a tipificação criminal a cargo do Congresso. Os números são assustadores: 445 LGBT+ morreram no Brasil em 2017, vítimas da homotransfobia, sendo 387 assassinatos e 58 suicídios. A cada 19 horas, um LGTB é brutalmente assassinado ou se suicida vítima da “LGTBfobia”. Matam-se mais homossexuais no Brasil do que nos 13 países onde vigora pena de morte contra os LGTBs. Daí ter afirmado o ministro Celso de Mello: “Versões tóxicas da masculinidade e da feminilidade acabam gerando agressões a quem ousa delas se distanciar no seu exercício de direito fundamental e humano ao livre desenvolvimento da personalidade, sob o espantalho moral criado por fundamentalistas religiosos e reacionários morais com referência à chamada ideologia de gênero”.

Essa apologia do preconceito e do ódio à diversidade atenta contra os valores do pluralismo e da igualdade que garantem o sincretismo étnico e cultural do Brasil. É a velha história: tudo o que não é o mesmo é o outro, o inimigo. “O outro é o estrangeiro, de nacionalidade, de raça, de etnia, de religião, ou de língua. Para a Ku Klux Klan branca, anglo-saxônica e protestante, o estrangeiro é o preto, depois o imigrante branco recente (latino, sérvio, escandinavo), finalmente o católico e o judeu. Esse preto torna-se um negro, na África do Sul. Para os nazistas, são estrangeiros os não arianos e os judeus”, explica Harris Memel-Fote no artigo “O outro e o mesmo”.

Trata-se da visão totalitária dos padrões hegemônicos e excludentes das diferenças, que institucionaliza os regimes de “apartheid” e a violência oficial. Para a lógica da intolerância, não há limite para o massacre aos contrários em sua sanha de faxina étnica, ideológica e cultural. Por isso, as ousadias da liberdade sempre enfrentaram o ímpeto totalitário, calcado na perseguição e no terror sem fim. Como elucida Hannah Arendt, “a luta pelo domínio total de toda a população da Terra, a eliminação de toda realidade rival não totalitária, eis aí a tônica dos regimes totalitários” (“Origens do totalitarismo”). Nesse contexto, as diferenças e as dissidências foram alvo da deturpação estereotipada das marginalidades, pelo que amargaram o tranco da história e do absolutismo das verdades pseudocientíficas transformadas em dogmas da fé ou da política de Estado.

A intolerância institucionalizada explica as fogueiras da Inquisição, os patíbulos, os campos de concentração, os fornos crematórios, as execuções sumárias, o cárcere político, as internações psiquiátricas e os suplícios de todo tipo. Que o digam Giordano Bruno, Tommaso Campanella e Galileu Galilei, dentre a legião de insurretos de todos os tempos. No campo da sexualidade, os padrões vitorianos impuseram a doutrina da interdição, do silêncio e da hipocrisia a qualquer custo. Isto explica o império do medo, da clandestinidade e da inculpação arbitrária gerado pela intimidação secular no seio da família e da sociedade reacionárias. Michel Foucault adverte: “Dizer que o sexo não é reprimido, ou melhor, dizer que entre o sexo e o poder a relação não é de repressão, corre o risco de ser apenas um paradoxo estéril” (“História da sexualidade”).

O que está em causa são os valores constitucionais do pluralismo e das opções individuais no plano da sexualidade. Impõe-se, por isso, o repúdio dos democratas e de quantos acreditam que a intolerância só pode justificar-se em face da própria intolerância.