Título: Batalha pela liberação
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 18/07/2012, Mundo, p. 17

Pela primeira vez, helicópteros atacam Damasco. Combates se espalham e os rebeldes anunciam ofensiva final

Opositores fazem pausa para a oração, durante confronto em Damasco

Fadi Khouri, 32 anos, estava no trabalho quando avistou um helicóptero sobrevoar Al-Quaboun, um bairro situado a cerca de 10km da Praça Merjeh, o ponto central de Damasco. "Vi o aparelho disparar tiros de metralhadoras. Colunas de fumaça subiram de diferentes partes desse distrito, provavelmente após os ataques de morteiros e de tanques", contou ao Correio, por meio da internet, o morador da região leste da capital.

Enquanto a cidade de 2 milhões de habitantes sofria a primeira incursão aérea desde o início do levante, em 15 de março de 2011, a guerra se aproximava dos prédios do regime. "A batalha pela libertação de Damasco começou, e os combates não vão parar. Nós vamos para a vitória", disse à agência France-Presse (AFP) o coronel Kassem Saadeddine, porta-voz do Exército Sírio Livre (ESL). Os rebeldes sírios batizaram a ofensiva de "Operação Vulcão de Damasco e Terremotos da Síria", cujo início coincidiu ontem com o 12º aniversário da chegada do ditador Bashar Al-Assad ao poder, sucedendo o pai, Hafez.

Testemunhas relataram à tevê Al-Arabyia que membros das forças de segurança, armados com fuzis AK-47, travaram um tiroteio na Praça Sabah Bahrat, sede do Banco Central da Síria, e na Rua Bagdá, uma das vias centrais mais movimentadas. "Atiradores dispararam de dentro de um carro em alta velocidade contra os guardas que vigiavam a sede do Partido Baath", acrescentou Khouri. Da Praça Abbassiyyin, no centro de Damasco, a relações-públicas Grace Chaoui, 21 anos, podia ouvir morteiros e explosões. "Como os departamentos de segurança do governo estão instalados em áreas residenciais, o ESL os ataca e os civis ficam no fogo cruzado", explicou ao Correio. "Os militares são lunáticos, estão alvejando seu próprio povo! É uma tática autodestrutiva", emendou. Grace acredita no pior. "Al-Assad continuará com a repressão, mais pessoas morrerão e a ONU permanecerá inútil. A guerra civil se intensificará", concluiu.

Segundo o grupo opositor Observatório Sírio para Direitos Humanos, 86 pessoas morreram ontem em todo o país, 19 delas em Damasco. A agência AFP noticiou ontem que o Exército ocupou o bairro de Midane, próximo ao centro, e cercou a Mesquita de Zine Al-Abidine. Os soldados exigiram a debandada dos moradores, antes de uma invasão iminente. As forças de segurança também isolaram o distrito de Tadamoun (sul), onde ainda existem focos de resistência. "O regime de Al-Assad está afundando e ficou louco", declarou um militante que se proclama como Abou Moussab. "Eles atiram em tudo e acabam de destruir a Mesquita Ghazwat Badr."

Também morador de Damasco, Ali W. Hasan, 20 anos, acusa terroristas da Al-Qaeda de usarem a população civil como escudo humano. "Os marginais da Al-Qaeda estão atacando tudo o que encontram com vida pelo caminho. Em alguns locais, eles realizaram matanças sectárias, eliminando cristãos, drusos e alauitas", denunciou à reportagem. O discurso de Hasan coincide com a retórica adotada pelo regime de Al-Assad. Fontes do exército insistem em usar o termo "terrorista", em referência às baixas em combate. De acordo com um militar, "33 terroristas foram mortos, 15 ficaram feridos e 145 acabaram presos" no bairro de Al-Quaboun. O general Manaf Tlass, oficial de maior patente a desertar o Exército sírio, refugiou-se ontem em Paris e esboçou o desejo de uma transição construtiva. Ele expressou sua "ira e dor por ver o Exército levado a travar um combate contrário a seus princípios".

Diplomacia

O enviado especial da Liga Árabe e da ONU a Damasco, Kofi Annan, teve ontem o segundo dia de negociações com o governo russo, em Moscou. Durante a reunião com o presidente russo, Vladimir Putin, o ex-secretário-geral admitiu que não houve progresso que possa levar a uma solução para a crise síria. Por sua vez, Putin prometeu fazer "de tudo" para apoiar o plano de paz de Annan. Ao fim do encontro de 90 minutos, o chanceler Serguei Lavrov avisou: "Não vejo razão para que não possamos também concordar com o Conselho de Segurança; estamos prontos para isso".

Guerra nas ruas

Damasco entrou ontem no terceiro dia de confrontos de rua e ataques aéreos:

Domingo, 15 de julho Combates sem precedentes têm início na capital da Síria. O Exército dispara morteiros contra vários bairros, onde estão entrincheirados os rebeldes do Exército Livre Sírio (ESL), formado por desertores e por civis armados.

Segunda-feira, 16 de julho Apoiado por tanques, o Exército de Bashar Al-Assad entra no bairro de Midan, perto do centro. Os combates se estendem aos bairros periféricos do sul, oeste e leste de Damasco. À noite, os rebeldes dizem controlar os distritos de Midan (sul) e Tadamoun (leste).

Ontem Durante a noite, os helicópteros metralham o bairro de Al-Quaboun. Rajadas de armas automáticas são ouvidas no coração de Damasco, na Praça Sabeh Bahrat. O ESL garante ter derrubado um helicóptero em Al-Quaboun. Os rebeldes anunciam a "batalha da liberação de Damasco".

entrevista PIERRE KRÄHENBÜHL

"A única solução é a ação política"

MARIA FERNANDA SEIXAS

Em um conflito interno que dura 17 meses e que já deixou mais de 17 mil mortos, 80 membros do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), junto aos integrantes do Crescente Vermelho Sírio (equivalente árabe da Cruz Vermelha), transitam como a única ajuda humanitária em meio ao fogo cruzado que afeta quase 20 milhões de habitantes. A experiência dessa equipe de profissionais levou à confirmação oficial, no último sábado, de que a situação na Síria já pode ser considerada um conflito interno armado — uma guerra civil, em outras palavras. Sem escolher lados, Pierre Krähenbühl, diretor de operações do CICV, esteve em Brasília e, durante uma entrevista coletiva, comentou sobre os trabalhos no país e descreveu a experiência de cuidar, com uma equipe limitada, de uma população vitimizada pelo desejo de democracia.

Segurança "Hoje, vemos um crescente número de grupos armados e de cidades afetadas. Nos últimos meses, conseguimos melhorar o acesso a diversas cidades e regiões, como Aleppo, Deir ez-Zor, Idlib, Hama e outras regiões, nas quais, hoje, somos autorizados a transitar. Mas a segurança ainda é um problema para os civis e para a ajuda humanitária. O Crescente Vermelho perdeu sete membros, incluindo voluntários, em ataques deliberados contra as ambulâncias e equipes. É um fato muito sério porque mostra como o país pode lidar com a ajuda humanitária. É um grande desafio ajudá-los. Temos que temer, pois a tendência é de que as próximas semanas e meses sejam mais violentos."

Guerra civil "Não digo que é uma guerra civil porque essa expressão não tem embasamento legal. Baseamos a nossa análise na Convenção de Genebra e usamos a expressão "conflito armado não internacional", um verdadeiro conflito interno em todo o país."

Necessidades "A preocupação imediata com as necessidades dos civis é a de que sejam respeitados e protegidos pelos grupos armados. Mas existem outras preocupações, claro. Quando as ações militares se iniciaram, as pessoas deixaram suas casas e suas cidades. Elas precisaram fazer decisões rápidas, pegar alguns pertences e fugir. Algumas para a Jordânia, a Turquia e o Iraque. Outras se mudaram para regiões internas. Elas escapam e chegam a centros de assistência ou a escolas que acolhem os refugiados, e se deparam com a falta de água fresca, comida, medicamentos e condições de higiene. Ou, muitas vezes, os sírios que fogem de seus lares são recebidos por outras famílias, que acabam dividindo o pouco que têm com eles... Então, a pressão é muito grande sobre todos. Tentamos assistir essas famílias, os refugiados e os centros que os recebem. A assistência que fornecemos nos últimos seis meses já ajudou mais de 600 mil pessoas."

Nações Unidas "A ONU tem um papel muito importante. Mas a natureza dos conflitos, hoje, dificulta os trabalhos de interferência. Existem opiniões diferentes entre os membros da ONU sobre o que devem fazer. E isso é um obstáculo. Mas não escolhemos lados. A neutralidade não é um mérito, mas é necessária para o nosso trabalho, para que possamos ganhar a confiança no país. O governo nos deu espaço porque sabe que não nos posicionamos."

Saída para o conflito almente, na minha visão, a única forma de resolver a situação da Síria é com ação política. Os conflitos que ocorrem no mundo, hoje, tendem a durar cada vez mais tempo, porque, presumimos, não existe ação política suficiente. Na Síria, a questão é mais complicada, pois parece que essa mobilização política é ainda mais difícil. Dentro da Síria, milhares cidadãos estão expostos a sérias ameaças de segurança, pela ação de vários grupos: tanto governamentais quanto da oposição. Mas, mesmo com as dificuldades de resolver os embates politicamente, é preciso que exista a preocupação com a segurança dos civis. As necessidades lá são muito maiores do que a ajuda que podemos oferecer."