Correio braziliense, n. 20351, 08/02/2019. Saúde, p. 14

 

Infecção por dengue protege contra o zika

08/02/2019

 

 

Primeiro estudo a comprovar a defesa cruzada é baseado na análise de moradores de um bairro da periferia de Salvador. Segundo os autores, o contato com o vírus DEN reduz em até 44% o risco de contrair o micro-organismo ligado à microcefalia

Mais de três anos depois da primeira epidemia de zika no país, com cerca de 1 milhão de brasileiros infectados entre 2015 e 2016, algumas questões sobre a doença permanecem em aberto. Uma delas é se já ter tido dengue — ou sido vacinado contra ela — aumenta ou diminui o risco de se contrair a enfermidade temida principalmente por gestantes. Embora estudos in vitro tenham sugerido que a presença no organismo de anticorpos contra o DEN protejam contra o ZIKV, pesquisas em animais não foram conclusivas. Agora, um estudo com participação de cientistas brasileiros, publicado na revista Science, mostra que essa associação é verdadeira.

A pesquisa, liderada pela Faculdade de Saúde Pública de Yale e pela Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, com colaboração da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), utilizou dados da comunidade de Pau da Lima, em Salvador. O bairro da periferia baiana foi escolhido por ter sido cenário de um estudo anterior de um dos autores, Albert Ko, epidemiologista de Yale. O cientista coletou sangue de 1.453 moradores entre outubro de 2014 e março de 2015. Os exames relativos ao período deram negativo para zika. Porém, essas mesmas pessoas foram testadas em outubro de 2015, auge da primeira epidemia da doença no Nordeste O resultado: 73% tinham sido infectadas.

Antes do surto em Pau da Lima, outros 642 moradores da comunidade tiveram o sangue coletado e testado para dengue. No caso, 86% tinham anticorpos para a doença, indicando que tiveram contato prévio com o vírus. Ao comparar esses dados aos dos exames de zika, os cientistas descobriram que, dependendo da quantidade de antígenos contra a dengue circulando no organismo, pessoas que já haviam sofrido dessa doença tinham até 44% menos risco de contrair zika. Essa proteção é progressiva, constataram os pesquisadores. “Esse é o primeiro estudo que avalia essa questão e demonstra que a imunidade à dengue pode proteger contra a infecção por zika em populações humanas”, comenta o epidemiologista Federico Costa, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Faculdade de Saúde Pública de Yale.

“Os resultados significam que há alguns anticorpos de proteção cruzada que a dengue fornece contra o zika”, diz Ernesto T. A. Marques, professor do Departamento de Doenças Infecciosas e Microbiologia da Universidade de Pittsburgh e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz. “Estudos futuros precisam ser feitos para checar se as novas vacinas contra dengue podem ser úteis para prevenir a infecção por zika”, destaca Marques, diretor científico da Cura Zika, uma aliança internacional que estimula a pesquisa sobre zika, microcefalia e outras doenças congênitas causadas em bebês.

Surto

Segundo Albert Ko, o estudo também explica o motivo da gravidade dos casos de microcefalia no Brasil. “A taxa excessivamente alta de infecção entre as mulheres grávidas em comunidades empobrecidas, como o nosso local de estudo, foi certamente a principal razão pela qual tivemos um grande surto de microcefalia entre as crianças no fim de 2015”, disse, em nota.

Por sua vez, os índices altos de infecção poderão proteger essa e outras comunidades afetadas igualmente pelo zika em próximas epidemias, destaca Isabel Rodriguez-Barraquer, professora-assistente da Universidade da Califórnia, em San Francisco, e autora sênior do estudo. Marques, porém, é cauteloso. “Nosso estudo foi feito em uma área urbana muito pequena e é provável que em outras partes do Brasil, mesmo em diferentes bairros de uma mesma cidade, as pessoas ainda estejam suscetíveis à infecção por zika”, alerta.

Frase

“Estudos futuros precisam ser feitos para checar se as novas vacinas contra dengue podem ser úteis para prevenir a infecção por zika”

Ernesto T. A. Marques, professor da Universidade de Pittsburgh e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz