Título: Entre o real e o utópico
Autor: Tranches , Renata
Fonte: Correio Braziliense, 29/07/2012, Mundo, p. 20

Enquanto sobreviviam em meio a uma militância combatida por governos autoritários, os movimentos islâmicos defendiam arduamente suas utopias. Na posição de forças políticas durante as eleições da Primavera Árabe, as novas lideranças enfrentam o desafio de balancear suas ideologias com os anseios de sociedades ávidas por melhorias socioeconômicas, renegadas por anos de tirania. A maneira como esses governantes conduzirão esse processo, muitas vezes conflitante, é acompanhada com atenção por aqueles que temem o surgimento de regimes fundamentalistas.

Por ser o maior e um dos mais importantes países do Oriente Médio, o Egito atrai desconfianças. O recém-empossado presidente Mohamed Morsy, da Irmandade Muçulmana, já sente a pressão e tenta, ao mesmo tempo, gerenciar uma atordoada agenda doméstica e executar o papel inerente à liderança egípcia nas relações com a Autoridade Palestina e com Israel — ambos cruciais para a estabilidade da região.

Nas duas últimas semanas, Morsy recebeu os três principais líderes das duas facções rivais palestinas. Estiveram no Cairo o presidente da Autoridade Palestina e líder do Fatah, Mahmud Abbas; o chefe do grupo rival, Hamas, Khaled Meshaal, e seu primeiro-ministro, Ismail Haniyeh. Após as eleições palestinas de 2007, o Fatah e o Hamas entraram em desacordo. Atualmente, enquanto o primeiro controla a Cisjordânia, o segundo administra a Faixa de Gaza, que faz fronteira com o Egito. O governo egípcio tem atuado para facilitar a reaproximação das duas facções, em um processo que começou com o ex-presidente Hosni Mubarak.

Desde que a Irmandade Muçulmana abandonou a clandestinidade no Egito — durante a ditadura de Mubarak, ela era proibida de atuar politicamente — e seu Partido Liberdade e Justiça conquistou a Presidência e a maioria no parlamento, começaram a surgir temores e especulações de que o país pudesse rever os acordos de paz assinados há mais de 30 anos com Israel. O grupo islâmico chegou a considerar essa postura em 2011. Na época, o então candidato Morsy propôs um plebiscito sobre o tema.

O Egito foi a primeira nação árabe a reconhecer o Estado de Israel — além dele, apenas a Jordânia o fez. Uma pesquisa do instituto americano Pew Research Center mostrou que a maioria dos egípcios é favorável à revisão dos tratados assinados em Camp David (EUA), em 1979, o que aumentou o clima de hostilidade. Pesa ainda o fato de o Hamas — cuja fundação se inspirou na Irmandade Muçulmana — ser visto como um grupo terrorista pelo Ocidente e se recusar a reconhecer Israel.

Diante desse cenário, as partes envolvidas e os analistas estão otimistas, porém, cautelosos. Na avaliação do embaixador da Autoridade Palestina no Brasil, Ibrahim Al-Zeben, ao receber os líderes no Cairo, Morsy acenou que aponta a questão palestina como central na agenda doméstica egípcia. "Estamos com muitas esperanças de que o governo egípcio seguirá atento à questão da Palestina, que é estratégica", afirmou. Ele acrescentou, entretanto, a importância de que o Egito levante o cerco contra a Faixa de Gaza e assuma o papel de mediador no processo da reconciliação nacional palestina, dois pontos conflitantes com Israel.

A reaproximação entre o Hamas e o Fatah ainda não está concluída, apesar de um pacto assinado em maio de 2011 no Cairo. A prova de fogo será as eleições presidenciais e legislativas palestinas, previstas para este ano. A aliança, porém, poderá retardar uma possível volta à mesa de negociações entre palestinos e israelenses. O Hamas não reconhece o Estado judeu e rejeita qualquer diálogo com o país, a não ser sobre questões referentes ao cotidiano da população de Gaza.

Cautela

Ao comentar o encontro das lideranças palestinas e egípcia, o embaixador israelense em Brasília, Rafael Eldad, foi cauteloso, mas disse que seu país também demonstrou vontade de retomar os contatos com Cairo e de "trabalhar para a paz". "Não sei se é uma coisa boa (os encontros com líderes do Hamas). O Hamas fala claramente da destruição de Israel. Mas espero que os líderes do Egito e de Israel se encontrem no futuro próximo", afirmou.

Na avaliação do embaixador, ainda é muito cedo para conclusões, mas seu país espera manter "boa relação e cooperação" com o Egito, preservando os acordos de paz. "Temos de dar um pouco mais de tempo ao novo presidente para se organizar e fincar suas linhas, suas políticas, que espero que sejam de paz e de boa vizinhança", ponderou, considerando ainda ver a nação egípcia disposta a ajudar os israelenses e os palestinos a voltarem a conversar.

Por enquanto, o cenário — de acordo com o cientista político Gamal Abdel Gawad Soltan, diretor do Centro Al-Ahram de Estudos Políticos e Estratégicos (Cairo) — não deve se alterar, uma vez que Morsy tentará manter a estabilidade para a condução do novo governo. Para isso, segundo Soltan, a questão da Palestina e as relações com Israel estão diretamente ligadas . "A posição de Morsy é a de manter os acordos de paz com Israel e evitar uma deterioração da violência no Egito. Diria que ele está sendo sincero quanto a isso", afirma. "A explosão de uma crise no Oriente Médio poderá minar sua capacidade e sua habilidade de prover um governo efetivo."

Sinais de mudança na sociedade

Apesar de a Irmandade Muçulmana dar garantias, por diversas vezes, de que o governo de Mohamed Morsy não transformaria o país em uma república islâmica, pequenas mudanças já são observadas no Egito. Uma delas chamou a atenção na última semana, quando o país ganhou seu primeiro canal de tevê no qual as mulheres aparecem vestidas com o véu muçulmano completo — o niqab. A emissora leva o nome de uma das mulheres do profeta Maomé, Maria. Segundo a rede, as mulheres que usam o niqab são discriminadas na imprensa e não podem trabalhar em outros canais. Sua criação é um sinal da maior liberdade religiosa desde a queda de Hosni Mubarak. Também na última semana, o novo primeiro-ministro, Hisham Qandil, apareceu usando barba, tornando-se o primeiro na história do país a fazê-lo. A barba já foi vista com um símbolo de piedade religiosa no Egito e, ao ser adota por um político, sugere mais um sinal de transformação na sociedade egípcia.