Título: Kofi Annan sai de cena
Autor: Craveiro , Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 03/08/2012, Mundo, p. 18

Ele já havia fracassado ao não evitar o genocídio em Ruanda, quando esteve à frente dos capacetes azuis — as forças de paz das Nações Unidas. Dezoito anos depois, as palavras de Kofi Annan, ex-secretário-geral, revelavam sua incapacidade também de mediar a guerra civil na Síria. "Não recebi todo o apoio que a causa merecia. Há divisões na comunidade internacional. Tudo isso complicou minha tarefa", anunciou o diplomata ganês, ao admitir um novo fiasco e ao entregar o cargo de enviado especial da ONU e da Liga Árabe a Damasco. "A crescente militarização sobre o território sírio e a clara falta de unidade no Conselho de Segurança mudaram as circunstâncias do exercício efetivo de minha tarefa", acrescentou, em uma crítica à Rússia e à China, que por três vezes impuseram seu veto a resoluções de condenação ao regime de Bashar Al-Assad pela sangrenta repressão ao levante.

O anúncio da renúncia de Annan — que fica no cargo até o fim de seu mandato, em 31 de agosto — torna cada vez mais improvável uma saída diplomática para o confronto na Síria. O atual secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, lamentou profundamente a decisão de seu antecessor e afirmou ter iniciado as conversações com Nabil El-Araby, chefe da Liga Árabe, para a escolha de um substituto. "Kofi Annan merece nossa profunda admiração pelo modo altruísta com que colocar suas formidáveis habilidades e seu prestígio para essa tarefa difícil e potencialmente ingrata", declarou Ki-moon.

O regime de Al-Assad também demonstrou seu pesar pela renúncia de Annan. O Ministério das Relações Exteriores da Síria divulgou um comunicado, por meio do qual culpou os "Estados que tentam desestabilizar o país e que colocaram obstáculos à missão de Annan" — uma referência às potências ocidentais, à Turquia e às nações do Golfo.

A Casa Branca sinalizou que a desistência do diplomata mostra a falta de compromisso de Al-Assad com o plano de paz de seis pontos de Annan. "A renúncia de Annan destaca o fracasso da Rússia e da China no Conselho de Segurança", disse o porta-voz, Jay Carney. Uma das exigências era que as tropas do governo e a oposição armada firmassem um cessar-fogo. Para ajudar a aliviar "as horrendas atrocidades" de Al-Assad, o presidente dos EUA, Barack Obama, aprovou verba de US$ 12 milhões em ajuda humanitária a 1,5 milhão de sírios. De acordo com a agência Reuters, o mandatário teria assinado uma ordem secreta autorizando o apoio da Agência Central de Inteligência (CIA) aos rebeldes.

Destruição diante das mesquitas de Azaz, ao norte de Aleppo: confrontos se intensificaram nos últimos dias

Vergonha Em entrevista ao Correio, Radwan Ziadeh, especialista em Oriente Médio pela Universidade de Georgetown, admitiu que a postura da China e da Rússia no Conselho de Segurança inviabilizou a tarefa de Annan. "Apesar da escalada diária de violência, a comunidade internacional, sobretudo Moscou, não queria que Annan fosse bem-sucedido", afirmou o sírio. "A situação tornou improvável que o Conselho de Segurança apoiasse o plano de paz." O presidente russo, Vladimir Putin, chamou de "grande vergonha" a decisão do emissário. "Kofi Annan é um homem de grande mérito, um brilhante diplomata e uma pessoa muito honesta, então, isso é uma grande vergonha."

Por sua vez, o exilado sírio Shady Hamadi, líder da ONG Insaan Rights Watch na Europa, lembrou à reportagem que a missão de Annan sempre foi inócua. "Se 300 observadores da ONU não são suficientes para controlar nem mesmo Damasco, eles imaginavam que conteriam a violência no país? A renúncia representa o impasse da comunidade internacional nos âmbitos diplomático e humanitário." Segundo ele, o enviado à Síria falhou por não ter negociado com os russos, com os chineses e com países sul-americanos que apoiam Al-Assad. "Também deveria ter imposto uma força de manutenção da paz para proteger os manifestantes e um embargo completo ao regime", defendeu.

Se na diplomacia o clima é de derrota, no front a situação se agravou. Os combates de ontem deixaram ao menos 60 mortos, incluindo 20 palestinos de um campo de refugiados em Damasco atingido por três morteiros. Ao norte de Aleppo, os insurgentes bombardearam o aeroporto militar de Menagh, usado pelas forças de Al-Assad. No bairro de Jdeidet Artouz, na capital, uma multidão se reuniu para enterrar 35 civis executados com tiros no rosto, na cabeça e no pescoço, anteontem. "Não recebi todo o apoio que a causa merecia. Há divisões na comunidade internacional. Tudo isso complicou minha tarefa" Kofi Annan, ex-secretário-geral da ONU