O globo, n. 31226, 03/02/2019. País, p. 12

 

Penas sem julgamento: agilidade e risco de injustiça

Renata Mariz

03/02/2019

 

 

Pauta de Moro, instrumento que dispensa processo se acusado assumir culpa abre polêmica sobre aplicação

Nos filmes e séries americanos de tribunal, o embate entre acusador e advogado costuma render cenas tensas antes mesmo do julgamento. Com blefes e performances teatrais, cada lado busca os melhores termos para um acordo em antessalas de fóruns e delegacias. A condição número um é que o acusado se declare culpado, em troca de vantagens como diminuição de pena. Quando a negociação dá certo, caso encerrado. Popular nos Estados Unidos, o modelo de justiça criminal com possibilidade de acordos entre Ministério Público e acusados, conhecido por plea bargain ,que dispensa o julgamento, poderá ser implantado no Brasil.

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, trabalha em um projeto nesse sentido que será enviado ao Congresso. Dramatizações televisivas à parte, a ideia de desburocratizar o Judiciário tem apoio de forma geral, mas suscita controvérsia no formato. Criminalistas, juízes e estudiosos do tema alertam para o risco elevado de se produzir injustiças.

Com receio de penas altas, inocentes podem ser compelidos a assumir delitos que não cometeram atraídos pelos acordos. Se o problema já coloca o sistema em xeque nos Estados Unidos — onde 25% das 139 pessoas com condenações revertidas em 2017 tinham se declarado culpadas —, no Brasil a tendência de erros judiciários é ainda maior.

—Com a população pobre que temos, muitas pessoas ainda sendo mal defendidas, o risco de isso se tornar pena sem processo e sem grandes benefícios para o réu é muito grande — afirma Thiago Bottino, diretor de estudos legislativos do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e professor da Fundação Getulio Vargas.

Uma lei que estabeleça parâmetros gerais e regras de procedimentos é apontada como ponto fundamental para que o plea bargain brasileiro não se transforme em usina de condenações equivocadas. O próprio rol de crimes que devem ser abarcados provoca polêmica.

Não há consenso, por exemplo, se os homicídios e demais crimes dolosos contra a vida poderiam ser resolvidos por acordos no Brasil. Isso porque a Constituição estabelece que a competência para julgar tais delitos é do tribunal do júri (pessoas comuns escolhidas na população).

Outro ponto de tensão é sobre o papel do juiz. No modelo americano, as partes fazem o acordo nos termos que bem entenderem, com pouca ou nenhuma interferência dos magistrados. Em outros países, em geral europeus, que também adotam o sistema de negociação, há um acompanhamento maior. É esse o modelo defendido por Walter Nunes, da Associação dos Juízes Federais (Ajufe):

— Acho que os acordos devem ser submetidos ao juiz, que pode aceitar, rejeitar ou ainda ajustar termos, como a definição da pena, por exemplo.

O risco inerente à existência de um Ministério Público superpoderoso, que pode inclusive decidir a quem oferece acordo e a quem não oferece, é o ponto de maior preocupação de criminalistas. Eles defendem uma lei que estabeleça crimes, proporções de pena passíveis de negociação, entre outras regras. Propõem, além disso, uma regulamentação objetiva que obrigue a gravação em áudio e vídeo das conversas até o acordo.

— Tem de haver transparência nessa negociação. Até para que a sociedade fique indignada se houver generosidades no benefício— afirma Bottino. Presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), que defende a adoção do instituto do plea bargain, Victor Hugo Azevedo afirma que o modelo será um mecanismo de modernização do processo penal brasileiro sem produzir condenações de inocentes:

— O MP brasileiro concorda com procedimentos que previnam ao máximo eventos erros judiciais.

A explosão da população presa é outro efeito colateral que ronda ople abarga in americano eque o Brasil pode herdar caso não formate bema proposta. Nos EUA, ondem ais de 97% dos condenados por crimes federais em 2016 não passaram por julgamentos, mas sim fizeram acordos, já se discute se a economia de recursos obtida coma desobstrução da Justiça compensa os gastos com as prisões, que abrigam mais de 2,3 milhões de pessoas hoje — a maior massa carcerária do mundo.

A própria ideia sedutora de economia de dinheiro e recursos humanos, ao evitar uma montanha de processos em tramitação na Justiça criminal quando se permite solução por acordos, é questionada por Fábio Tofic Simantob, advogado e presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa:

—É claro que a Justiça fica mais rápida, gasta-se menos dinheiro. Masa Justiça não existe par agastar pouco dinheiro, existe para evitara ida de inocentes para a cadeia. A legislação brasileira já contempla a possibilidade de acordos na área criminal, como a suspensão condicional do processo, a transação penal e a própria delação premiada.

No entanto, os dois primeiros institutos são para casos específicos com penas muito baixas. A colaboração se tornou mais conhecida a partir da Lava-Jato, mas não encerra o processo sem julgamento como o tipo de acordo que Moro pretende propor ao Congresso.

Por meio da assessoria, Moro informou que a proposta está em elaboração e não pode dar detalhes sobre ela. O ministro fará coletiva amanhã para tratar do tema. A Ordem dos Advogados do Brasil( OAB) foi procurada, mas não indicou ninguém para falar. O mesmo ocorreu coma Associação Nacional dos Defensores Públicos. O Ministério Público Federa lé favorável.