O globo, n. 31270, 19/03/2019. País, p. 6

 

Inquérito aberto por Toffoli gera controvérsia

Carolina Brígido

André de Souza

Bernardo Mello

19/03/2019

 

 

Ministro Marco Aurélio afirma que se manifestaria contra a iniciativa caso assunto fosse discutido em plenário

O ministro Marco Aurélio se disse contra inquérito para apurar ofensas ao STF. Dois colegas de Corte também criticam decisão. Oinquérito aberto pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, para apurar ofensasà Cortegerou controvérsia na comunidade jurídica enãoé unanimidade nem entre os ministros da própria Corte. A iniciativa, no entanto, recebeu apoio de entidades como a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Em entrevista à Globo News, o ministro Marco Aurélio disse discordar do procedimento:

—Se ele tivesse submetido a matéria, eu me pronunciaria contra a instalação do inquérito e contra a designação de um relator, o ministro Alexandre de Moraes, porque o inquérito deveria ter ido à distribuição aleatoriamente via computador.

Para Marco Aurélio, o correto seria acionara PGR:

— Somos Estado julgador e devemos manter a necessária equidistância quanto a alguma coisa que surja em termos de persecução criminal —disse ele.

Outro integrante do Supremo disse ao GLOBO, em caráter reservado, que Toffoli não poderia ter aberto a investigação “de ofício” — ou seja, sem que a Procuradoria-Geral da República (PGR) tivesse feito o pedido antes. Um terceiro ministro afirmou que o inquérito, agora que já está aberto, deveria ser submetido à PGR, para o órgão indicar as diligências a serem feitas.

Na portaria que instaurou o inquérito, Toffoli justificou o ato “considerando a existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações (...) que atingem a honorabilidade do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares”. Até agora, foram designados um delegado da Polícia Federal e um juiz auxiliar para iniciar as investigações.

O presidente da Corte usou como base o artigo 43 do regimento interno, que estabelece: “Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do tribunal, o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro ministro”.

De acordo com a GloboNews, no entendimento de Toffoli — e de outros integrantes da Corte — os ministros representam a sede do tribunal porque podem atuar de qualquer lugar do país.

Procurada pela emissora sobre as críticas à abertura do inquérito, a presidência do STF disse “que há precedentes nesse sentido. E que isso é o tipo de coisa no limite, que não precisa ser feito, mas se necessário, é preciso fazer”.

Na sexta-feira, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge,enviou petição ao Supremo solicitando que o ministro Alexandre de Moraes forneça informações sobre o inquérito. Um dos pontos questionados foi o fato de que as apurações não terão a participação da PGR.

Dodge argumentou que a função de investigar não faz parte das competências do Judiciário, e que isso pode comprometer a imparcialidade no processo.

O inquérito foi aberto na quinta-feira e corre em sigilo. Formalmente, serão investigados fatos, e não pessoas. Por exemplo, o vídeo em que o coordenador da Lava-Jato em Curitiba, procurador Deltan Dallagnol, conclama a população a tomar partido do julgamento da semana passada que definiu o foro para investigar crimes conexos ao caixa dois.

Entre os alvos do inquérito também está ação da Receita Federal, que recentemente apurou movimentações financeiras do ministro Gilmar Mendes e da mulher de Toffoli, a advogada Roberta Rangel.

Para o ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp, que hoje é advogado, o regimento interno do STF não autoriza a Corte a abrir um inquérito por conta própria, somente instaurar processos para apurar fatos ocorridos nas dependências do tribunal:

—O Supremo deveria, essa é a lógica do nosso sistema penal constitucional, primeiro pedir a instauração de um inquérito perante a Procuradoria-Geral da República, ou perante a Polícia Federal, que são os órgãos de investigação. O Supremo não tem poderes para abrir uma investigação criminal.

Independência

Segundo fontes do STF, o caso só irá ao Ministério Público (MP) se, ao fim das apurações, houver indicação que algum procurador cometeu ilícito. A praxe é a PGR pedir a abertura de investigação ao tribunal contra pessoas com direito ao foro especial.

No entendimento do presidente da AMB, Jayme de Oliveira, o procedimento, no entanto, tem sim amparo no Regimento Interno do STF, e não seria muito utilizado porque poucas vezes se precisou dele.

— O que é inadmissível é que se queira violar a independência do Judiciário, com pressão indevida sobre o órgão julgador, obrigando-o a decidir do jeito que quer a acusação ou a defesa —disse Oliveira.

O Conselho Federal da OAB manifestou apoio à decisão de Toffoli. “Ação semelhante parece ter sido orquestrada contra a advocacia nacional, que nos últimos meses se viu alvo de notícias falsas, denunciações caluniosas e ameaças que buscam atingir a honra das advogadas e dos advogados brasileiros”, disse, em nota.

“Somos Estado julgador e devemos manter a necessária equidistância quanto a alguma coisa que surja em termos de persecução criminal ”

Marco Aurélio, ministro do STF

Pontos questionados

1 Abertura do inquérito

Uma investigação criminal vinculada ao Supremo Tribunal Federal é inicialmente requisitada pelo Ministério Público Federal. Há uma brecha no regimento que permite abertura de investigação quando o crime é cometido na sede do STF.

2 Escolha do relator

Inquéritos abertos no STF têm relator escolhido por sorteiro eletrônico. O presidente do Supremo indicou pessoalmente o ministro Alexandre de Moraes como relator. Há, no entanto, precedente na Corte.

3 Condução da investigação

Aberto inquérito, o ministro relator envia o caso para a Polícia Federal investigar. O MP analisa o resultado da apuração e solicita diligências. Neste caso, o ministro Alexandre de Moraes é quem conduz a investigação que está sob sigilo.

4 O crime

O inquérito é aberto a partir de uma notícia de crime. O caso só fica no STF se o suposto autor tiver foro na Corte. Não há foro especial para a vítima. Ou seja, no presente caso as vítimas seriam ministros do Supremo.

5 Descrição da conduta criminosa

A portaria do presidente do STF que determinou abertura de investigação não menciona um caso específico. Fala genericamente de atos contra ministros do Supremo, como “a existência de notícias fraudulentas” e “denunciações caluniosas”.

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Para Fux, decisão sobre caixa dois não gerou crise

Rennan Setti

19/03/2019

 

 

Ministro diz que entendimento do STF não enfraquece Lava-Jato e que julgamento ‘talvez tenha sido mal interpretado’

O ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), negou ontem que exista uma crise institucional instalada após a decisão da Corte de que crimes como corrupção e lavagem de dinheiro, quando ligados à prática de caixa dois, deverão ser julgados pela Justiça Eleitoral.

O ministro minimizou ainda a preocupação de procuradores da Lava-Jato em Curitiba, que enxergam na medida o enfraquecimento da força-tarefa. Eles queriam que esses casos ficassem na Justiça Federal, por ser uma estrutura mais preparada, na visão deles, para conduzir investigações complexas. Nas palavras de Fux, atual vice-presidente do Supremo, “Ministério Público e STF sempre se relacionaram bem e isso continuará” a acontecer.

— Talvez o julgamento tenha sido mal interpretado e mal dimensionado — afirmou Fux, que foi voto vencido no placar de 6 a 5 — (A equipe da Lava-Jato) Continua com sua autonomia. Não há crise institucional nenhuma.

A maioria do STF decidiu, em votação concluída na última quinta-feira, que crimes eleitorais só podem ser julgados pelo ramo especializado do Judiciário, mesmo quando a prática estiver ligada a outros delitos. Um agente público, por exemplo, que tenha recebido propina e usado o dinheiro em campanha, sem declarar os valores, pode ser enquadrado em caixa dois, mas também em corrupção. O caso, portanto, deveria ser conduzido pela Justiça Eleitoral, segundo o entendimento do plenário da Corte.

Sem nulidade

A decisão, porém, não é automática. Os juízes responsáveis pelas causas decidirão se os processos serão transferidos para a Justiça Eleitoral.

A partir do entendimento do Supremo, advogados poderão pedir a nulidade de decisões tomadas em processos que estão na Justiça Federal, alegando que houve caixa dois.

Fux afirmou, no entanto, que não vê risco de que decisões, como as proferidas no âmbito da Lava-Jato, sejam anuladas.

— Todas as decisões judiciais têm que ser moduladas para não anular nada do que foi praticado — declarou o ministro do STF, antes de palestra na Fundação Getúlio Vargas (FGV).

De acordo com Fux, o Ministério Público continuará tendo autonomia para, na hora de tipificar os crimes em suas denúncias, remetêlas à Justiça Federal, inclusive em casos de caixa dois. Caberá a cada juiz, caso a caso, aceitar ou não o encaminhamento sugerido pelos procuradores.

— O MP é o dono da ação penal e é ele que vai decidir se vai fatiá-la (enviando-a à Justiça Federal e Eleitoral). Se ele oferecer a denúncia por crime eleitoral, o caso vai para a Justiça Eleitoral; se oferecer por crime federal, vai para a Justiça Federal —disse Fux.

O ministro disse ainda que a prática de caixa dois, em alguns casos, poderá ser remetida à Justiça Federal. De acordo com Fux, o entendimento do STF é de mandar à Justiça Eleitoral apenas “crimes comuns inerentes” a este âmbito, o que inclui boca de urna e falsificação de documento.

— O caixa dois também (poderá ser julgado pela Justiça Federal), dependendo da origem do dinheiro. Se você aplica nas eleições dinheiro ilícito, você está lavando dinheiro.