O globo, n. 31282, 31/03/2019. País, p. 4

 

Desafios no caminho do governo

Bruno Góes

Eduardo Bresciani

31/03/2019

 

 

 Recorte capturado

 

 

Trégua entre Bolsonaro e Maia será testada em pauta espinhosa da Câmara

Depois da troca de ataques semana passada, os acenos de paz entre o presidente da República, Jair Bolsonaro, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), serão testados, na prática, por um arsenal de propostas espinhosas para o governo que estão na pautado Legislativo. A anunciada trégua ocorre emu mambi ente político que segue conturbado. Deputados reclamam da falta de diálogo como Palácio do Planalto, que se traduz na dificuldade de construção de uma base aliada.

Um dos primeiros projetos da filaéa reparação aos estados que foram prejudicados pela Lei Kandir, que deu benefício para exportadores ao reduzir impostos estaduais. Se o texto que tramita na Câmara for aprovado, a União terá de repassar R$ 39 bilhões por ano aos entes da federação. Maia diz que o tema só entrará na pautas e for discuti doantes coma equipe econômica. Mas não descarta levar o assunto adiante. Outra proposta em discussão pelos líderes visa a flexibilizara Leide Responsabilidade Fiscal para os municípios. Ai deiaéa provar um projeto de lei complementar, do deputado Édio Lopes (PRRR), que retira dos cálculos de descumprimento da LRF as despesas com pessoal referentes à execução de programas federais e estaduais. Geralmente os municípios têm despesas muito maiores nesses programas do que os repasses recebidos da União.

Em meio a essa pauta bomba, em um gesto de boa vontade, Maia anulou, na última sexta-feira, a convocação do ministro Sergio Moro (Justiça) para prestar esclarecimentos à Comissão de Legislação Participativa. Ele falaria sobre o decreto que facilitou a posse de armas e também detalharia o pacote anticrime, enviado à Câmara em fevereiro. Já o acordo para o ministro Paulo Guedes (Economia) ir à Comissão de Constituição e Justiça da Casa, discutir a Reforma da Previdência, permanece.

Ceticismo

Apesar das tratativas de paz e da perspectiva de que Guedes ajude na articulação política para a aprovação da reforma, há um clima de ceticismo no Congresso. Líderes partidários não estão seguros de que o ministro consiga conciliar a agenda técnica da reforma com as negociações com o Congresso. —Quem tem que fazer a articulação é o ministro (da Casa Civil) Onyx (Lorenzoni), que já prometeu uma reaproximação na conversa com os partidos.

O ministro Paulo Guedes faz muito bem em conversar com os deputados, mas não é a área dele — diz o líder do PSD, deputado André de Paula (BA). Mesmo com o início de pacificação, o ministro da Casa Civil ouviu de líderes partidários um rosário de reclamações no fim da semana. A principal delas é sobre a associação, feita por Bolsonaro, das demandas do Congresso com o “toma lá, dá cá”. Líderes também se queixaram de ele resumir a necessidade de articulação a uma prática da “velha política”. —Valeu como um grande desabafo — disse o líder do PSD.

Um dos principais alvos de irritação dos deputados é o assessor especial da Presidência Filipe Martins. Nas redes sociais, ele convocou militantes para ir às ruas pressionar parlamentares a se alinharem com o governo. Na lista de obstáculos para o governo, partidos do centrão preparam um plano para desfigurar a reforma administrativa feita por Bolsonaro na Esplanada.

A ideia é reduzira inda mais o número de ministérios e mudara atribuição de vários integrantes do primeiro escalão, em especial de Sergio Moro. Nesta semana, uma comissão para analisara matéria deve ser instalada. Líderes se mobilizam par afazer uma “reforma” e podem extinguir os ministérios do Turismo, dos Direitos Humanos e a Secretaria Geralda Presidência, além de recriara pasta de Segurança Pública. Desde que Bolsonaro entrou em rota de colisão com Maia, deputados do centrão ameaçam ainda apoiar uma proposta do P SOL que derruba recente decreto do presidente. Em viagem aos Estados Unidos, há duas semanas, Bolsonaro anunciou que turistas daquele país, além de Canadá, Japão e Austrália, não precisariam mais de visto para entrar no Brasil. Maia apelou aos líderes para que não derrubem a regra. No Senado, no entanto, a oposição acredita que pode dar o recado.

—O governo está prestes a sofrer uma derrota no caso dos vistos — diz Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Outra medida, revelada pelo colunista Merval Pereira, é uma emenda constitucional proposta em 2000 pelo falecido senador Antonio Carlos Magalhães (DEM-BA), muito mais rigorosa em relação ao orçamento impositivo do que o texto aprovado na última semana pela Câmara.

Em meio à troca de farpas com o Congresso na semana passada, o presidente Jair Bolsonaro usou a expressão “velha política” para se referir a práticas de parlamentares que, segundo ele, são perversas. A empresários, disse que “não vai jogar dominó com Lula e Temer no xadrez”, como uma possível consequência por negociar cargos no governo para formar uma base aliada. Antes, chegou a perguntar:

“O que é articulação?”. O GLOBO ouviu acadêmicos e políticos experientes para responder a essa pergunta. A resposta remonta à classificação criada pelo cientista político Sérgio Abranches, em 1988: o regime brasileiro é um “presidencialismo de coalizão”. Trata-se, segundo ele, de um sistema em que o Poder Executivo precisa do apoio de maioria de diversos partidos no Congresso para poder governar. Existem casos parecidos na Europa, mas a dispersão de siglas no Brasil seria única. —Quando o presidente vai ao Congresso e negocia uma coalizão, ele vai receber apoio de alguns, e outros vão dizer: esse negócio aqui eu não toco. É uma negociação legítima. Acertando um programa de governo com o qual a coalizão vai colaborar e estabelecendo como vai colaborar, ela compartilha do poder de governo. Não é um ato de corrupção.

Lula, Dilma e Temer

Nesse arranjo, os recursos de poder e financeiros devem ser divididos de forma proporcional com os parceiros, e a coalizão precisa espelhar a preferência mediana do Congresso. Segundo o cientista político Carlos Pereira, da Fundação Getulio Vargas (FGV), o problema ocorre quando partidos não conseguem modular o tamanho e o equilíbrio do arco de alianças:

—Não construir uma coalizão majoritária em um presidencialismo multipartidário é o mesmo que se recusar a governar. O sistema político brasileiro necessita de um presidente que tenha capacidade de gerenciar uma coalizão majoritária, ideologicamente homogênea. Segundo Pereira, Lula e Dilma erraram porque as coalizões eram grandes demais e heterogêneas ideologicamente, concentrando recursos no PT, sem espelhar a maioria do Congresso:

—Já Temer foi tão bom gerente de coalizão que sobreviveu a duas denúncias de corrupção da Procuradoria-Geral da República. Para o cientista político, o que se chama de “toma lá dá cá” é negociação, e existe em qualquer democracia. O que pode ser saudável ou não são os termos de troca. Ao ofender uma suposta “velha política”, Bolsonaro acaba atingindo até os integrantes de seu partido, diz o líder do PSL na Câmara dos Deputados, Delegado Waldir (GO).

—Acho um grande equívoco qualquer pessoa, seja o presidente da República ou o líder do governo, tratar de “velha” e “nova” política. Somos todos eleitos pelo povo. Isso é uma espécie de bullying político. Em entrevista no início do ano, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso contou como operava a coalizão durante seus dois mandatos e alertou: quem não dá atenção ao Parlamento pode sofrer consequências graves.

—Os presidentes que não deram atenção ao Congresso em geral sofreram impeachment. O Congresso dá o troco. É difícil. Tentei criar um conselho de presidentes de partidos, mas não funcionou, então tinha reunião com líderes. Eles trazem as demandas do Congresso ao presidente, e, muito menos, levam a posição do governo aos comandados. O líder do PDT na Câmara dos Deputados, André Figueiredo (CE), sugere que Bolsonaro crie, também, um conselho que se encontre periodicamente no Palácio do Planalto.

—Não tem essa história de que tudo que se negocia com o Congresso é em cima de propina e benesses indevidas. Bolsonaro era um deputado que pouco dialogava com os pares. O que não pode é ficar mandando recado (para Rodrigo Maia, presidente da Câmara) em rede social, isso é inimaginável para um presidente. Para Carlos Melo, cientista político do Insper, o termo “velha política” é um clichê que carece de definição. O problema, diz ele, não é a política em si, mas se apropriar de um bem público para um fim privado. Ele cita o caso do ex-presidente da Câmara, Severino Cavalcanti (PP-PE), que disse que queria “aquela diretoria que fura poço e acha petróleo” para um indicado seu em 2005, se referindo à Petrobras.

Por outro lado, políticos e acadêmicos não veem sentido na estigmatização da liberação de emendas parlamentares ou de cargos para que os partidos que pertencem à coalizão possam participar do governo. Corrupção ou chantagem são outra história completamente diferente, diz Miro Teixeira (Rede-RJ), ex-deputado e ex-ministro das Comunicações do governo Lula. Um exemplo de barganha que descambou para a corrupção, segundo ele, era a gestão de Eduardo Cunha (MDB-RJ), ex-presidente da Câmara que fazia “obstrução ao governo até que conseguisse alcançar seu objetivo pessoal”.

—Eu não concordo com a expressão “velha política”, porque a política é íntegra, é honrada. O que tem são políticos que a desqualificam. Ele cita como exemplo o caso de Collor:

—Começou a cooptar deputados e, quando fez maioria absoluta, foi deposto, porque não era uma relação sincera. Não era amor. Não havia interesse comum, havia ambições —define Miro Teixeira.

Armadilhas a serem desarmadas

1 Repasse maior aos estados

Compensação aos estados por perdas com a Lei Kandir, que desonerou exportações, faria a União repassar R$ 39 bilhões por ano aos entes da federação.

2 Irresponsabilidade fiscal

Proposta prevê flexibilização da Lei de Responsabilidade Fiscal para os municípios. A ideia é salvar prefeitos que não cumprem a legislação.

3 Reforma administrativa

Deputados querem cortar três ministérios, recriar a pasta da Segurança Pública e mudar a atribuição de integrantes do primeiro escalão.

4 Volta do visto para americanos

Há iniciativas para derrubar decreto de Bolsonaro que isentou turistas de EUA, Japão, Canadá e Austrália da exigência de visto para entrar no Brasil.

5 Orçamento mais impositivo

Emenda constitucional proposta em 2000 torna mais rigoroso o orçamento impositivo. Medida é mais dura que texto aprovado na última semana.

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Congresso quer nova distribuição de forças

Paulo Celso Pereira

31/03/2019

 

 

A decisão do presidente Jair Bolsonaro de não dialogar com as demais forças políticas, inaugurando seu modelo de presidencialismo de não-coalizão, pode levar a um inédito empoderamento do Legislativo. Em meio ao embate com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, Bolsonaro afirmou que não tinha responsabilidade de buscar votos para sua pauta, pois acreditava que a única função do governo era enviar suas propostas ao Congresso. Na esteira dessa afirmação, a Câmara aprovou, na última terça-feira, proposta que torna obrigatórios os investimentos aprovados no Orçamento —impedindo que o governo privilegie as obras que lhe pareçam prioritárias.

A proposta está no Senado e deve ser votada nos próximos dias. Mas os parlamentares querem mais. Por considerarem autoritária a forma como Bolsonaro pretende conduzir o país, deputados e senadores já discutem novas formas de restringir os poderes presidenciais.

Um dos primeiros alvos devem ser as medidas provisórias. O discurso está na ponta da língua do presidente da Câmara: elas seriam versões modernas dos decretos-lei da ditadura militar, usurpam poderes do Legislativo por terem efeito imediato ao serem publicadas e, por isso, não caberiam em um sistema democrático.

Desde a redemocratização, as MPs foram o meio mais usado pelos governos para efetivar decisões. Nos últimos 18 anos, foram editadas quase 900. Só em seus três meses de governo, Bolsonaro fez nove. Os poderes do presidente da República no Brasil já foram por vezes definidos como “imperiais”.

Os expresidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula conseguiram montar coalizões políticas amplamente majoritárias que garantiram a aprovação de boa parte de suas propostas. Em troca, os partidos aliados participavam ativamente do governo, com o comando de ministérios e atuação direta nas políticas públicas. Bolsonaro joga todos os acordos políticos de quem não lhe é devoto em uma genérica suspeita de corrupção.

Com isso, justifica a decisão de não partilhar o poder presidencial. No entanto, o Congresso, igualmente legitimado pelas urnas, já sinaliza que não pretende abrir mão de atuar na definição das políticas públicas. O aviso subliminar é simples: se não nos der poder, nós tomamos.

Na visão de parlamentares, as PECs que limitam o poder do Executivo sobre os investimentos e sobre as medidas provisórias deveriam ser o início de uma nova repartição de poderes. Já há quem defenda a votação de projetos de parlamentares para criar políticas públicas completas em áreas populares, como educação infantil.

A ideia é delegar ao governo o papel de mero despachante de decisões externas. Foi, a propósito, este o papel que o Congresso desempenhou em muitos momentos nas últimas décadas. Sem diálogo com Bolsonaro, os parlamentares agora querem inverter as posições.