O globo, n. 31275, 24/03/2019. Mundo, p. 34

 

Voto e racismo

Alessandro Soler

24/03/2019

 

 

Discriminação cresce antes de eleição espanhola

Três ataques acentros de imigrantes em menos de dez dias na Catalunha acenderam o alerta. Frequentes no discurso da extrema direita que desponta nas pesquisas prévias à eleição nacional de 28 de abril, racismo e xenofobia parecem estar se tornando naturais na Espanha, aponto de saltarem da fala, das piada seda invisível discriminação cotidiana para a violência física.

No incidente mais grave, no dia 9, cerca de 20 pessoas encapuzadas de Castelldefels, a pouco mais de 20km da turística Rambla de Catalunya, em Barcelona, invadiram e atacaram a pause pedras um centro de acolhida de menores procedentes de países árabe seda África Subsaariana. Adolescentes imigrantes, além de educadores, ficaram feridos. No dia seguinte, um grupo ainda maior, de umas 80 pessoas,tentou apedrejar o centro e foi impedido pela polícia. Antes, no fim de fevereiro, outro centro para menores imigrantes em Canet de Mar sofreu um protesto de dezenas de pessoas que gritavam slogans racistas; uma semana mais tarde, um homem irrompeu com um facão ofendendo os estrangeiros e foi preso. Relatório do Movimento Contra a Intolerância divulgado na quinta-feira, Dia Internacional Contra a Discriminação Racial, detalhou 602 crimes de ódio no país em 2018. Pequena amostragem de um total que a entidade estima em 4 mi la 6 mil anuais. Não há dados oficiais. A seção catalã da ONG SOS Racismo revelou um crescimento de 36%, em um ano. Essa região é líder em denúncias de racismo. Foram 529 atendimentos só na unidade de Barcelona.

"Ser negro é ser suspeito"

Há um indisfarçável mal-estar de parte da população com o que considera uma “explosão” da imigração. Ao longo de todo o verão e do outono passados, TVs mostraram chegadas de barcos precários trazendo imigrantes.

As 64.298 pessoas que desembarcaram nas costas espanholas em 2018, tornando o país a principal porta de entrada europeia de refugiados pelo mar, sequer roçam os 180 mil da Itália em 2016.

Mas o que importa é a percepção. E ela vem sendo turbinada pelo discurso anti-imigração de alguns dos líderes da direita que, segundo as pesquisas, poderiam chegar ao poder central repetindo a fórmula recém-adotada no parlamento regional da Andaluzia. Ali, a coalização entre Partido Popular (direita), Cidadãos (centro-direita) e Vox (extrema direita) conseguiu a maioria das cadeiras e, assim, o controle do governo.

— Parece que estamos obrigados a aceitar que as nossas fronteiras sejam assaltadas. Parece que há liberdade migratória, segundo a esquerda. Esses 4% de muçulmanos que há na Espanha, não podemos deixar que se tornem um problema — pregou Santiago Abascal, líder do Vox, sob aplausos e gritos de “Viva Espanha!” na cidade de Santa Lucía, nas Ilhas Canárias.

Não é um discurso isolado. Líderes de PP e Cidadãos têm dado sinais de que não só a imigração, mas questões identitárias como uma difusa exaltação à hispanidade em oposição ao independentismo catalão, são atônica principal do debatep ré-eleitoral. Albert Rivera, do Cidadãos, critica o “bom-mocismo” e os “portos abertos” do governo e pede um endurecimento nos controles. Já Pablo Casado, do PP, cujas posições extremistas o têm aproximado do Vox, é mais explícito.

— Aqui não há ablação de clitóris (como ocorre em alguns países muçulmanos, sobretudo africanos), não se matam carneiros em casa e não há problema de segurança pública — disse num comício meses atrás, ligando imigrantes à criminalidade.

— Não há lugar para todos. Ou eles se adaptam aos costumes ocidentais ou se vão. O problema, para muitos imigrantes,éa sensação de deslocamento mesmo quando se adaptam aos “costumes ocidentais”.

No bairro madrilenho de Lavapiés, onde há forte presença negra e árabe, as pessoas espalhadas pelas terrazas bebendo cerveja e tomando sol, a arquitetura e tu domais fazem lembrara boa e velha Espanha —talvez numa versão mais cosmopolita, com mais tons de pele, línguas e cheiros vindos de restaurantes de comida típica de dezenas de países.

A principal diferença está na presença ostensiva de carros de polícia. Na sexta-feira, O GLOBO presenciou uma abordagem policial a um homem negro que fumava olhando oi revir de turistas. Os policiais não foram particularmente agressivos, mas, em meio a dezenas de brancos na Praça Nelson Mandela, ele foi o escolhido.

— Acho que foi pela minha barba. Pensaram que era muçulmano, pediram documentos e perguntaram o que fazia aqui—disse, o homem que pediu paranã o ser identificado.

—Acontece todo dia. Já não esquento mais. Ser negro, aqui,é sempre ser suspeito de algo.

Provar o valor

Carpinteiro de 27 anos da República Centro-Africana, Maca Falla coleciona histórias de abordagens policiais bem menos inofensivas:

— Você pode estar andando pela rua, voltando do trabalho, que será abordado. Eles perguntam “o que você está levando?”, em busca de drogas. Já me deram um tapa na cara por eu questionar a abordagem aleatória.

O racismo existe na sociedade como um todo, no “ei, negro” que usam para me chamar na rua ou até no ambiente de trabalho, quando me olham com desconfiança. Mas a polícia é mesmo o pior. Ano passado, durante perseguição da polícia madrilenha a camelôs, aqui conhecidos como manteros por expor as mercadorias em mantas estendidas na calçada, um deles morreu.

Os agentes alegaram que Mame Mbaye, senegalês de 35 anos, teve um infarto fulminante, mas companheiros dele, que era ativista e denunciava o racismo policial, os acusaram de tê-lo espancado.

No último dia 15, uma manifestação reuniu milhares de pessoas em Lavapiés para recordar Mbaye e reivindicar um tratamento digno a pessoas não brancas.

— Falas racistas são nosso pão de cada dia. Impossível dizer quantas vezes escutei piadas sobre a minha pele, os meus cabelos rasta. Trabalhei na TV montando cenários. Um dia, precisavam de um pintor, não de parede, artístico. Me ofereci porque sou mesmo pintor. Não acreditavam, debochavam. Aqui, você tem que provar seu valor acada minuto—contou, em português, G abi Mane ,42 anos, imigrante da ex-colônia lusa da Guiné-Bissau.

—Vejo o discurso doVox,elesn os colocam como pessoas a temer, a evitar. Se ganharem, sem dúvida nossa situação vai piorar. Mas o mais duro é saber que esse tipo de discurso se espalha pelo mundo. Daqui apouco, não haverá para onde correr.