O globo, n. 31275, 24/03/2019. Sociedade, p. 37

 

Militarização

Renata Mariz

24/03/2019

 

 

Estados antecipam-se a governo federal e investem em escolas com gestão compartilhada

Meninas de coque, meninos de cabelo curto. Todos com camiseta branca por dentro da calça jeans. Na formação em fila, antes de seguirem para a sala de aula, os estudantes se organizam em "pelotões". Gritos de "Sentido!" e "Descansar!" se alternam. De microfone em punho, o subtenente da PM Moreira Mendes diz que "a missão é contribuir para a vida dos senhores", dirigindo-se a alunos ainda não acostumados à nova rotina do Centro Educacional 1 da Estrutural. A escola, localizada a 20km do centro de Brasília, conta com 1.028 alunos do ensino fundamental e é uma das quatro do Distrito Federal que foram "militarizadas" neste ano pelo governo de Ibaneis Rocha (MDB). Ele promete implantar o modelo em outros 36 colégios.

O movimento é acompanhado por ao menos outras dez unidades da Federação, segundo levantamento do GLOBO. São estados que vão iniciar ou expandir a rede de escolas públicas de gestão compartilhada com instituições militares. Em geral, a parceria é com a PM, mas há iniciativas com o Corpo de Bombeiros, como no Rio. Dois Colégios do Corpo de Bombeiros Militar, um em Volta Redonda e outro em Miguel Pereira, em antigos Cieps, terão suas aulas inaugurais na terça-feira. Eles funcionarão em horário integral. No estado, há ainda outras iniciativas isoladas de parceria da secretaria de Segurança Pública com redes municipais de educação. Dos 15 estados que responderam à consulta, apenas cinco afirmaram não se interessar pelo modelo.

Os projetos são todos tocados por conta própria pelos governos locais, enquanto o Ministério da Educação prepara um programa de fomento ao que chama de escolas cívico-militares, promessa de campanha do presidente Jair Bolsonaro. O MEC foi procurado, mas não respondeu ao GLOBO. A divisão de tarefas nas escolas que funcionam no modelo tem sido a mesma país afora: as secretarias de Educação cuidam da parte pedagógica, com professores e profissionais de apoio, e os militares assumem postos na diretoria, administração e equipes de inspeção disciplinar. O pagamento dos militares fica sempre por conta das secretarias de Segurança Pública.

Não é raro o colégio militarizado também receber investimentos para recuperação de infraestrutura e compra de equipamentos. No DF, cada unidade deverá receber R$ 200 mil este ano. Entre 20 e 25 PMs ou bombeiros reforçarão o quadro de funcionários de cada colégio com gestão compartilhada. Também foi pedido um repasse de R$ 10 milhões ao MEC para a expansão do modelo. Fontes do ministério afirmam que o DF tem todas as condições de ser parte destacada da parceria.

Planos para Suzano

O ministro da Educação também defende a militarização da escola pública Raul Brasil, de Suzano, palco do atentado que deixou 12 mortos no último dia 13, incluindo os dois atiradores. Ricardo Vélez Rodríguez anunciou nas redes sociais que vai se encontrar amanhã com o prefeito da cidade paulista para estudar a viabilidade do modelo cívico-militar na unidade. Um dos aspectos mais controversos do novo modelo é justamente o argumento, por defensores da iniciativa, de que alunos, professores e funcionários teriam uma maior segurança em ambiente militarizado. Doutora em Educação e professora da Universidade de Brasília (UnB), Catarina de Almeida Santos considera um erro usar a tragédia de Suzano como exemplo no debate sobre os resultados da militarização das escolas:

— Da mesma forma, se o atentado tivesse ocorrido em uma escola militarizada, seria doentio da parte de quem é contra o modelo apontar esse aspecto para fazer conjecturas. Suzano é um caso atípico que não serve de parâmetro. Já a professora Estela Accioly, diretora pedagógica da escola na Estrutural, acredita que a presença de policiais em colégios minimizaria efeitos de episódios como o de Suzano. Não apenas porque os PMs têm treinamento e arma de fogo para barrar um atirador, mas também, segundo ela, por um maior monitoramento dos alunos.

—É um olha ramais para observar alunos que podem ser vítima de violência ou de automutilação. A presença dos policiais já tem ajudado muito na escola neste sentido.

Mas já há reação no setor educacional a métodos disciplinares considerados rígidos, mecanismos de seleção de alunos e riscos de interferência na parte pedagógica. Na escola da Estrutural, a farda no estilo militar que os alunos irão receber ainda não havia chegado. Mas bermudas extravagantes, batons de cores fortes, piercings e brincos chamativos foram proibidos. A diretora conta que a comunidade escolar votou em peso a favor da entrada da PM na gestão da escola. Consultas também foram feitas nas outras três unidades do DF recentemente militarizadas. O Sindicato dos Professores protestou.

Regras e 'propósito'

Com perfil de aluno aplicado, Arthur Moraes de Souza diz não se incomodar com as novas regras. Sorteado como "xerife" da sala na semana — uma espécie de assistente do professor —, o garoto de 11 anos se levanta a cada troca de aula, vai ao quadro-negro e bate continência ao docente que chega. O resto da turma também tem que ficar de pé, não sem algumas queixas balbuciadas e expressões faciais de tédio.

— Deu um pouco de vergonha de errar nas primeiras vezes, mas estou gostando. Quando o professor sai, cuido para a sala ficar em silêncio — diz Arthur, que cursa o 6º ano. Para Moreira Mendes, monitor disciplinar na escola da Estrutural, a recepção à moda militar aos professores pode parecer um gesto banal, mas carrega um propósito: — Os alunos passam a enxergar o professor de outra forma.

O gesto mostra que ali está a maior autoridade dentro da sala de aula. Além de criar o senso de responsabilidade nos xerifes. Catarina de Almeida Santos discorda. De acordo com ela, as teorias pedagógicas modernas colocam o professor como mediador do conhecimento, com o "respeito" no lugar do "medo":

—Não é na lógica do quartel que os alunos aprenderão a ter respeito. O ambiente propício para a aprendizagem é aquele em que os estudantes recebem o professor com alegria e sem receio de fazer perguntas — defende Catarina.

Para a professora da UFGO Miriam Fábia Alves, diretora da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, o que, de fato, colabora para a melhoria das escolas são investimentos, e não a militarização:

— Com mais dinheiro e pessoal, renovação de infraestrutura e equipamentos, não precisaríamos da polícia. Estudiosa do modelo adotado em Goiás, o maior do país, com 60 unidades (5,36% da rede pública estadual), ela diz ser falsa a divisão de atribuições:

—Os demais processos interferem na parte pedagógica. Não há gestão compartilhada, mas uma gestão militar. A gestão participativa (com voz dos alunos, funcionários e pais) está sendo destruída — afirma, sobre a realidade goiana. Outra crítica às escolas militarizadas são as regras pouco claras para seleção dos alunos. A exclusão dos que burlam o código disciplinar, direcionados para outras unidades, é uma delas —medida que os demais colégios da rede não podem tomar.

No Mato Grosso, as sete escolas com gestão compartilhada fazem processo seletivo, com provas de português e matemática. Nas do Paraná, para ingresso no início das etapas ofertadas (6º ano do ensino fundamental e 1ª série do médio), metade das vagas é destinada a filhos de PMs (da ativa e da reserva). Há estados em que os militares selecionados para as escolas são da ativa, mas no DF são chamados os da reserva ou com dispensa médica. A PM informou que os policiais com restrição psicológica não são recrutados.