Título: Jogada baseada na confiança
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Fonte: Correio Braziliense, 12/08/2012, Brasil, p. 14

A abordagem é a mesma: eles se aproximam e prometem um futuro de sucesso. Famílias acreditam e entregam seus filhos a abusadores. Para especialistas, o medo de não concretizar o sonho faz o silêncio predominar Juliana Braga e Renata Mariz (textos)

Eles se aproximam com promessas. Geralmente, procuram filhos de famílias humildes, garotos que veem na carreira desportiva não só o sonho de viver de futebol, mas também de ascensão social. Vêm com presentes, alimentam a expectativa de o menino se tornar um ídolo e, depois de conquistada a cumplicidade das crianças e o respeito da família, a violência começa. Em todo o país, os abusadores que atuam no esporte agem da mesma maneira. Aproveitam-se dos sonhos, das fragilidades e do medo de um estigma.

Favores financeiros são uma das formas que os pedófilos usam para garantir a confiança da família. Esmeralda estranhou quando o vizinho Osvaldo Guides Camargo, o Bozó, se ofereceu para levar o filho de 11 anos, Guilherme, para treinar na escolinha onde lecionava em Sorocaba (SP). "Disse que não tinha dinheiro para pagar as aulas, mas ele disse que levaria de graça", conta Esmeralda. Surpreendeu-se quando o menino começou a aparecer com pequenas quantias em casa — entre R$ 5 e R$ 10. "Fui perguntar pro Bozó que dinheiro era aquele e ele disse que era porque meu filho tinha ajudado a lavar o carro. Eu mandei o Guilherme devolver. Quem tem que dar dinheiro para ele sou eu." Ainda assim, não desconfiava de abusos.

O alerta veio de um sobrinho de Esmeralda que havia treinado na escolinha e não gostava de Bozó. Depois de perguntar e insistir, o garoto relatou os abusos. Os encontros eram no haras em que ocorriam as aulas e na casa do professor. Participavam, além de Guilherme, outros dois meninos da mesma idade. Bozó se tocava enquanto mandava as crianças fazerem sexo oral uma nas outras. Além da prática, o treinador também obrigava os meninos a darem banho nele.

Essa forma de abuso, além de cruel, não deixa marcas físicas. Os exames realizados pelo Instituto Médico Legal não encontraram sinais de violência sexual, mas, para a titular da Delegacia da Mulher de Sorocaba, Ana Luiza Salomone, não há dúvidas a respeito do crime. "Hoje os juízes já entendem que a ausência de lesões não significa que não houve o abuso. Até porque algumas denúncias só são feitas depois de um tempo", explica.

Esse tempo é ganho, principalmente, pelo medo de os garotos admitirem a agressão. A ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, explica que, no caso de meninos, o relato passa ainda por tabus relacionados à sexualidade. "Estamos lidando com uma dimensão cultural perversa, em que o que está colocado em questão não é só a situação do abuso em si, mas também as circunstâncias de construção da masculinidade", pontua. Quando os jovens atletas precisam sair de casa atrás da carreira, tornam-se presas indefesas. "A ida para outras cidades, sob a responsabilidade de outros adultos, é preocupante. Não deixa de ser uma forma de agenciamento a busca do menino na periferia de uma grande cidade ou no interior, para dizer que ele vai ser um craque em um time."

Nesse contexto, existe ainda a posição de autoridade dos professores. "É tudo muito cruel, muito vil. Ele cresce na autoridade para cima dessas crianças que, de alguma maneira são indefesas e acreditam que ele é capaz de realizar um sonho", explica a delegada Ana Luiza. "A ameaça de não viabilizar suas carreiras serve como garantia de silêncio. Que menino não quer ser jogador de futebol num clube grande?"

Descrença A incredulidade tomou conta de Joana quando um homem preso por pedofilia, ano passado, apareceu em um programa da televisão sul-mato-grossense. "Não consegui acreditar", lembra a manicure de cabelos oxigenados. O rosto era de José Martins, professor de futebol de seus dois filhos, também considerado um amigo. "Fazíamos churrasco no aniversário dos meninos, estava sempre na vizinhança", conta Joana, 32 anos. "Comecei a entender o motivo de tantos presentes, até uma bicicleta ele deu para o Henrique. Eu achava que fosse porque ele era sozinho e gostava da gente."

Questionado pela mãe, o filho mais velho negou qualquer abuso. O mais novo, Henrique, que conviveu com o pedófilo dos 7 aos 8 anos, quis chorar quando Joana perguntou se o professor já havia tocado em suas partes íntimas. Nervosa, a criança respondeu: "Eu também vou ser preso?". Depois que Joana explicou que nada aconteceria com ele, Henrique confirmou os abusos. "Ele entrou na minha casa, ganhou minha confiança para fazer uma coisa dessas", revolta-se.

Assim como Joana, outros pais do Colibri, bairro de Campo Grande afastado do centro, acreditaram nas boas intenções do professor, preso em flagrante. "Ele vinha a nossa casa para convidar os meninos. Pegava fotos, tinha ficha de inscrição, tudo direitinho. A gente nunca ia imaginar uma coisa dessas", afirma Mara, mãe de outro garoto que treinava com Martins. A impressão de seriedade da escolinha modesta, que cobrava pequenos valores e funcionava em um campinho público, compensava a falta de grandes craques revelados pelo treinador.

Além do mais, Martins estava sempre pronto a ajudar as famílias, inclusive financeiramente. "Teve um mês que ele pagou meu aluguel", diz Joana. A relação próxima inibe os garotos de denunciarem a violência. Principalmente quando têm pouca idade, explica a psicóloga Mônica Café, especialista no tema, as vítimas não conseguem compreender a dimensão do abuso. "Isso causa muita confusão na cabeça das crianças, porque embora ela possa se sentir invadida e impotente, as zonas erógenas do corpo quando manipuladas dão prazer. E aí a personalidade pode ficar muito mexida."

Em respeito ao ECA, os nomes dos personagens citados são fictícios

"Alguns jovens infelizmente se prestam a algumas coisas para poder jogar no time, receber um pouco de dinheiro e treinar. O responsável, o treinador, estão totalmente errados e têm que ir pra cadeia" Romário, deputado federal e ex-jogador

Leia amanhã sobre a falta de fiscalização nos clubes e escolinhas Visite o hotsite especial sobre a série de reportagens em www.correiobraziliense.com.br

A série Quando a infância perde o jogo foi vencedora da Categoria Impresso do VI Concurso Tim Lopes de Jornalismo Investigativo, realizado pela Agência de Notícias da Infância (Andi) e Childhood Brasil, com o apoio do Unicef, da OIT, da Fenaj e da Abraji.