Título: Violência velada em grandes clubes do país
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Fonte: Correio Braziliense, 11/08/2012, Brasil, p. 8

Denúncias mostram que jovens atletas de times de renome nacional também são vítimas de abuso e exploração sexual. Em muitos dos casos, os processos acabam em acordos e termos de compromisso antes mesmo de serem julgados Juliana braga e renata mariz (textos) Iano andrade (foto)

Não só em campinhos do interior do país, quando ser um astro dos gramados ainda é um sonho distante, o drama do abuso sexual está presente. A violência também ocorre em escolinhas e categorias de base da elite do futebol brasileiro. Além do medo de serem mandadas embora de um grande clube, contribui para o silêncio das vítimas o receio de não serem levadas a sério. Poucas denúncias que saem da invisibilidade — muitas das quais abafadas posteriormente devido a pressões inerentes a uma atividade que movimenta bilhões no Brasil — mostram que o problema existe, a despeito de às vezes ser tratado como folclore. No Grêmio, uma denúncia de abuso sexual estourou em 2009, quando meninos da categoria sub-13 criaram coragem para reclamar, depois de meses adiando a decisão. "A gente falava entre a gente. Ficava pensando se alguém ia acreditar em nós", diz Maurício*, em depoimento anexado ao processo obtido pelo Correio. Segundo trechos do documento, o menino, que morava sozinho no alojamento do clube em Porto Alegre, porque a família era do interior do estado, quebrou o silêncio durante uma viagem a Alegrete (RS) para um campeonato.

Na ocasião, o então coordenador técnico das categorias de base do tricolor gaúcho, José Alzir Flor da Silva, teria voltado a tocar os garotos enquanto eles dormiam, como costumava fazer. Mas Maurício estava disposto a acabar com a situação. Ele conta, em seu depoimento, que após o coordenador ter se masturbado tocando-o, ele levantou da cama e avisou: "Eu vi o que tu fez e eu vou contar para minha mãe e para o diretor". Alzir, por sua vez, teria retrucado: "Volte a dormir que tu está sonhando". "Não estou sonhando e eu sei que isso é grave", respondeu. O incidente da madrugada foi repassado, logo de manhã, a um estagiário por quem os garotos tinham amizade e confiança. Tempos depois, o caso extrapolou as paredes do Grêmio, chegando aos pais e às autoridades.

Laudos assinados por psicólogos e psiquiatras do Ministério Público (MP) do Rio Grande do Sul apontam que os depoimentos dos meninos atenderam aos critérios de veracidade. "Precisávamos ver se não era uma forma de tirar aquele funcionário do clube", lembra a promotora Denise Villela, que firmou um termo de compromisso operacional com o Grêmio determinando algumas regras. "Um exemplo é que o clube não admita em seus quadros quem responde por crime envolvendo criança e adolescente."

Nunca vi, mas já ouvi falar. A gente sabe que isso, às vezes, acontece. A criança, o jovem, fica com receio e acaba não denunciando. Não é uma coisa frequente, mas é algo comentado Raí, ex-jogador

Para a promotora, que só atuou na esfera administrativa do caso, o mais chocante foi constatar a cumplicidade que o abusador encontrava dentro do clube. "Todos da categoria de base foram praticamente unânimes em dizer que os meninos já haviam relatado os fatos", diz. Os funcionários estranhavam que Alzir preferisse dormir no alojamento dos garotos em vez de usar as acomodações da equipe técnica. Ele também pedia para ver a genitália dos meninos para medir a "maturação". "Fazia isso dizendo que era para não perder tempo enquanto o médico do Grêmio não chegava", contou um treinador, no processo.

Depois de 20 anos de casa, o treinador foi demitido do time e, atualmente, responde a processo na Justiça por crime sexual contra menor de idade, agravado pelo fato de que exercia, na época, autoridade sobre a vítima, na condição de coordenador técnico da base. A reportagem tentou contato com Alzir, por meio de seu advogado, mas não obteve retorno. Enquanto os detalhes do caso do Grêmio convenceram o MP gaúcho a oferecer denúncia, no Rio de Janeiro o caso mais rumoroso, envolvendo um dirigente do Flamengo, acabou arquivado. Segundo a assessoria de imprensa do MP do Rio, a vítima negou a violência, levando o processo a ser extinto.

Suspeitas

No Ministério Público Federal de São Paulo, a denúncia chegou de uma mãe que, após ver seu filho dispensado do Corinthians por ter sofrido uma lesão, decidiu quebrar o silêncio. Ela percebeu mudanças no comportamento do jovem, e depois de muita conversa, o menino falou. Evanir Jesus de Moraes, o Vando, gerente de Futebol amador do clube, levava os atletas de base para o sítio que tinha em Indaiatuba e, nas festinhas que organizava, cometia os abusos.

Integrantes do Ministério Público relatam que, com a certeza da impunidade, Vando foi se tornando cada vez menos cuidadoso e, quando o time foi acionado, se prontificou a resolver a situação. Foi firmado um termo de compromisso em que o clube paulista se comprometeu a afastar Vando e a melhorar a estrutura da base do time. O abusador não chegou a ser preso.

*Nome fictício em respeito ao ECA

Leia amanhã como agem os abusadores Visite o hotsite especial sobre a série de reportagens em www.correiobraziliense.com.br