Título: Deserção na cúpula
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Fonte: Correio Braziliense, 07/08/2012, Mundo, p. 18

Em mais um sinal de que pode estar próxima uma implosão na cúpula do regime sírio, o presidente Bashar Al-Assad perdeu ontem para a oposição seu primeiro-ministro, Riad Hijab, que tinha tomado posse há pouco mais de um mês e deixou o país para juntar-se à "revolução abençoada". Trata-se da deserção mais importante no alto escalão civil, depois que vários militares de alta patente abandonaram o Exército. Hijab e 10 famílias próximas a ele refugiaram-se na Jordânia. A Casa Branca afirmou que se trata de um sinal de que o presidente está "perdendo o controle no país". No campo militar, porém, as forças pró-Assad parecem longe de arrefecerem e continuavam com os bombardeios em Aleppo e Hama.

Como outros figurões que abandonaram o país, Hijab pertence à maioria muçulmana sunita. O regime é dominado pelos alauítas, uma confissão islâmica do ramo xiita, com o apoio de outras minorias religiosas, como os cristãos. Apesar de o ex-premiê não ser ligado ao núcleo familiar de Assad, sua saída é uma conexão a menos entre o regime e a principal comunidade religiosa do país. Na avaliação do especialista em Oriente Médio Salem Nasser, da Fundação Getulio Vargas (FGV, São Paulo), as próximas eventuais deserções devem continuar vindo dessa ala, uma vez que o presidente continua se sustentando no "núcleo duro alauíta" agrupado em torno do clã iniciado por seu pai, Hafez Al-Assad. "Mas é importante ressaltar que ainda há muito apoio ao regime vindo da parte sunita da população", ponderou Nasser, em entrevista ao Correio.

No cargo desde o fim de junho, após as eleições parlamentares, Hijab cruzou a fronteira da Jordânia com a família e deve viajar para o Catar, seguindo o roteiro de outros desertores. Segundo a oposição síria, outros dois ministros também teriam deixado Damasco, mas a informação não foi confirmada. O próprio anúncio da saída de Hijab foi confuso. Inicialmente, a televisão estatal tinha dito que ele fora demitido, mas uma fonte oficial na capital jordaniana, Amã, afirmou que ele foi dispensado apenas depois de ter fugido com a família. O regime nomeou para chefiar interinamente o governo o vice-premiê Omar Ghalawanji, que ontem mesmo presidiu uma reunião de emergência do gabinete.

A rede árabe Al-Jazeera transmitiu um comunicado do porta-voz de Hijab, Mohamed Otri, já em território jordaniano. "Anuncio hoje (ontem) minha deserção do regime terrorista e assassino e anuncio que me juntei aos soldados da liberdade e da revolução, com dignidade", disse o porta-voz. "Anuncio que sou, a partir de hoje, um soldado nesta revolução abençoada."

O órgão da oposição no exterior, o Conselho Nacional Sírio (CNS), comemorou a deserção. "É o começo do fim", previu o líder do CNS, Abdel Basset Sayda, convencido de que o regime "se desintegra". Declaração semelhante foi feita em Washington pelo porta-voz do Conselho de Segurança Nacional, Tommy Vietor. "Essa é outra indicação do fato de que Assad perdeu o controle da Síria", afirmou Vietor. Mas os contínuos bombardeios em cidades sírias, confirmados para o Correio pelo porta-voz da Agência de Notícias Hama, Samer Al-Husain, demonstram que o regime mantém a ofensiva. "Os bombardeios em Hama e no subúrbio de Damasco continuam ininterruptamente, destruindo prédios e casas", relatou. Al-Husain, que falava dos arredores da capital, citou familiares seus, moradores de Hama, segundo os quais moradores de vilarejos alauítas nessa cidade estariam atacando "com facas" os sunitas, em mais um indicador de que a rivalidade sectária e religiosa se acirra.

Essas disputas explicariam, por exemplo, o forte apoio ao regime não apenas por parte dos alauítas, mas de outras minorias, como explicou Nasser. "Há um grande medo do que acontecerá se o regime cair e se houver o domínio de um governo formado por extremistas do islã sunita", afirmou. "Hoje, sabe-se que a Al-Qaeda atua abertamente e há uma presença muito forte de grupos extremistas na Síria. Esses grupos estão lutando na oposição."

Al-Qaeda

Tese semelhante foi defendida pelo analista de Oriente Médio Ed Husain, do Conselho de Relações Exteriores (CFR, em inglês), um dos mais respeitados institutos dos EUA. Em artigo publicado ontem no site do CFR, Husain argumenta que os rebeldes sírios ficarão "imensamente enfraquecidos" sem a ajuda que vêm recebendo da rede terrorista Al-Qaeda, em um momento no qual suas forças parecem "divididas, caóticas e ineficientes", sem um apoio efetivo do Ocidente. "O fluxo de combatentes estrangeiros traz fervor religioso e disciplina, além da experiência de batalha adquirida no Iraque e do financiamento de simpatizantes sunitas do Golfo e, principalmente, resultados mortais. Em resumo, o Exército Sírio Livre precisa da Al-Qaeda agora."

"Anuncio que sou, a partir de hoje, um soldado nesta revolução abençoada" Riad Hijab, ex-primeiro-ministro da Síria

Multidão sem refúgio

O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) chamou atenção ontem para o alto número de pessoas deslocadas dentro da Síria, com pouco ou nenhum acesso à ajuda humanitária, que, segundo as estimativas, já ultrapassa 1,5 milhão. Em comunicado oficial, a agência assinalou que os embates forçaram muitos a deixarem suas casas à procura de ajuda de famílias solidárias ou de abrigos improvisados. "Muitas outras pessoas estão presas no meio da batalha e temem ser atingidas enquanto buscam proteção", disse a porta-voz do Acnur em Genebra, Melissa Fleming.

A agência da ONU informou que está trabalhando com a ajuda do Crescente Vermelho Árabe-Sírio (equivalente islâmico da Cruz Vermelha) em Aleppo, na tentativa de levar ajuda às pessoas e distribuir material básico para a construção de abrigos. O cerco à cidade, porém, impede a chegada do material. Ainda segundo o Acnur, há uma pane completa na cobertura de celulares e internet na região. A agência relatou situações de desespero, como o caso de 20 mil iraquianos que deixaram a Síria em meados de julho para voltar ao país de origem. Em território iraquiano, muitos foram alojados em novos campos.

Na Jordânia, só no mês passado, foi registrada a chegada de 9,5 mil pessoas, a maioria em Ramtha, no noroeste do país. Desde o início do conflito na Síria, em março de 2011, 37 mil pessoas teriam ingressado no território vizinho, segundo os dados oficiais. Autoridades jordanianas estimam, contudo, que esse número possa chegar a 150 mil. A Turquia é outro país muito procurado. Segundo informações do Acnur, entre 400 e 600 refugiados atravessam a fronteira diariamente. A agência estima que cerca de 44 mil vivam em campos turcos — metade deles teria menos de 18 anos. O Líbano também é um destino frequente dos refugiados sírios, especialmente para os que deixam as cidades de Homs, Dara"a, Aleppo e Damasco.

1,5 ilhão Total estimado de pessoas forçadas a abandonar o lar por causa do conflito na Síria

Três perguntas para

Salem Nasser, Especialista em Oriente Médio e professor de direito internacional da Fundação Getulio Vargas (FGV)

O senhor disse que as deserções podem estar sendo negociadas. Quem, na sua opinião, estaria trabalhando para derrubar o regime e quais os interesses? Há um cenário que se desenha na Síria, se o regime cair. Qual o desejo de quem está trabalhando para isso? Claro que cada grupo tem o seu objetivo, e ele estaria dividido em Estados Unidos, Arábia Saudita e Turquia. Cada um imaginando aspectos diferentes da situação, mas todos trabalhando com esse objetivo.

E quais são os interesses? A Arábia Saudita gostaria de ver surgir um regime sírio essencialmente sunita, talvez com tendência para o islã político mais conservador, como eles gostam. Tem interesse, ainda, na possibilidade de a Síria deixar de ser aliada do Irã, como é hoje. Um pouco o mesmo é o desejo da Turquia, que é governada por um partido islâmico. Por causa do jogo político, não é um islã muito visível, mas o presidente e o primeiro-ministro são do mesmo partido.

E os EUA? Também desejam uma Síria composta por aliados, por gente que possam controlar. Desejam uma Síria não mais aliada ao Irã e enfraquecida, que não possa mais desafiar Israel, além de não ter condições de apoiar os grupos de resistência na região, como na Palestina e no Líbano. Independentemente de o regime cair ou não, efetivamente, a Síria já está enfraquecida, de maneira suficientemente boa para os EUA.