Valor econômico, v. 18, n. 4469, 24/03/2018. Opinião, p. A9

 

Contrato fiduciário

Jairo Saddi

26/03/2018

 

 

Reveste-se da maior importância o tema "Contrato Fiduciário", que está no Projeto PLS-487, presente na edição de um Novo Código Comercial que tramita no Senado Federal sob relatoria do senador Pedro Chaves (PSC-MS). Ainda que o projeto também trate dos contratos bancários sob a denominação "contratos financeiros" (art. 528 e seguintes), é o contrato fiduciário, o trust do direito americano, que encerra a maior inovação.

Como se sabe, falta no Brasil lei própria ou mesmo uma regulamentação específica para o instituto, sendo um dos poucos países do mundo a não dispor dele. O instituto, por definição, tem como pressuposto a segregação da titularidade dos bens ou direitos, pela qual é atribuída ao trustee (administrador ou gestor) a custódia ou a gerência da propriedade e aos beneficiários a propriedade econômica.

Os bens dados em trust formam um patrimônio distinto dos bens do trustee, ainda que o trust não possua personalidade jurídica própria. É esta a definição de que se vale o art. 540 do Projeto: "O contrato fiduciário é o instrumento pelo qual um instituidor transfere, em caráter de propriedade fiduciária, bens e direitos a um administrador, para que os administre na extensão dos poderes e deveres estabelecidos em contrato, para a realização de propósito específico, em proveito de um ou mais beneficiários".

Inicialmente, é preciso dizer que o instituto ficou satanizado em razão de seu mau uso. Virou notícia quando o então deputado Eduardo Cunha foi acusado de ocultar recursos de origem ilícita no exterior titulados por um trust. Como habitualmente acontece nessas ocasiões, tudo o que remotamente fosse associado à ideia do fideicomisso empresarial seria imediatamente considerado suspeito e provavelmente ilícito.

Ainda que o Brasil não tenha o instituto do contrato fiduciário, há inúmeras outras leis que dele já se valem. Por exemplo, a transferência da titularidade de ativos com a constituição de um patrimônio de afetação de natureza testamentária, presente no Código Civil de 1916 (arts. 1.733 a 1.740, hoje regidos pelos arts. 1.951 a 1.960 do atual Código Civil de 2002). Ou, ainda, o advento da Lei 4.728, de 14 de julho de 1965, que criou o instituto da alienação fiduciária em garantia, ampliado pela Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997, ou mesmo a Lei 10.931, de 10 de janeiro de 2002, que estabeleceu regime específico para regular o contrato de alienação fiduciária celebrado no âmbito do mercado financeiro e de capitais.

Mas qual é a importância do contrato fiduciário?

Um primeiro aspecto fundamental diz respeito às garantias. O patrimônio transferido ao administrador por meio do contrato fiduciário integra o patrimônio dele, mas de forma segregada. Com a constituição do patrimônio fiduciário, o administrador torna-se seu legítimo representante, ativa e passivamente. Isso significa que a afetação dos bens dados ao administrador toma corpo e ganha eficácia com a previsão de que os bens e direitos integrantes do patrimônio fiduciário são impenhoráveis e não poderão ser objeto de arresto, sequestro, busca e apreensão ou qualquer outro ato de constrição contra o administrador ou o instituidor, não sendo também alcançados pelos regimes de intervenção, liquidação extrajudicial, administração especial temporária ou qualquer outro regime de quebra ou concurso de credores a que venha estar sujeito o administrador ou o instituidor.

Não há melhor instrumento para constituição de garantias de longo prazo, especialmente na construção de consórcios e parcerias público-privadas.

Segundo, na administração de ativos para fins filantrópicos, ecológicos ou mesmo casos de disputas judiciais, o trust é um instrumento inestimável, podendo também ser muito útil para fins testamentários, até a efetivação da transmissão sucessória. Outro exemplo de utilidade do trust é isolar fluxos de capital presentes e futuros de sociedades empresárias, com o fim de dar segurança a emissões de instrumentos de dívidas no mercado de capitais. A lista poderia continuar.

O contrato fiduciário foi delineado como mecanismo flexível, apto a servir como um poderoso instrumento de autonomia privada na definição dos elementos principais do negócio e no estabelecimento do regime a que se sujeita. Seu núcleo pode ser adaptado aos objetivos das partes, porém existem alguns requisitos essenciais (art. 541) que têm o condão de lhe conferir segurança jurídica. No mesmo sentido, o PLS prevê no art. 553 que "só podem ser administrador [sic] de patrimônio fiduciário as instituições financeiras autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil". E, ainda, na mesma toada, para que haja segurança e credibilidade, há muitas outras regras, por exemplo, a necessidade de dar publicidade ao contrato (art. 543), que só produzirá efeitos depois de ter sido tornado público.

Finalmente, volto à satanização do tema. O instituto do trust exclui qualquer consideração tributária - como, por exemplo, e de forma não excludente, o dever de declaração dos bens e recursos remetidos, a forma do envio e da existência de ativos no exterior, assim como apontamento da transferência do patrimônio pelo settlor (que era o proprietário originário), junto ao Banco Central para efeitos de Censo de Capitais Estrangeiros e à Receita Federal do Brasil, na declaração de bens do instituidor. Vale dizer, o trust não invalida as demais leis locais: de resto também celebrado pela citada Convenção da Haia no art. 19: "Nada nesta Convenção prejudicará os poderes dos Estados em matéria tributária".

Portanto, pode-se concluir que o trust é bem-vindo no nosso ordenamento jurídico, resolvendo de maneira definitiva o impasse de um contrato privado celebrado por brasileiro no exterior ao determinar que a lei do local em que foi celebrado seja a lei de regência, tornando-o, assim, plenamente acolhido e válido no Brasil.